sábado, 2 de maio de 2009

Gripe suína e biopoder

Danilo Arnaldo Briskievicz

Hoje vamos conversar sobre a gripe suína (H1N1) e o biopoder, conceito criado pelo filósofo francês Michel Foucault.

Vamos aos fatos: “o número de casos de vírus gripal influenza A (H1N1), nova forma adotada para chamar a gripe suína, confirmados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) praticamente duplicou nas últimas 24 horas, e agora chega a 615, incluindo 17 mortes em 15 países. No Brasil, há sete casos suspeitos, mas nenhuma confirmação. Só o México reportou 397 casos confirmados de infecções humanas causadas pelo novo vírus. Dezesseis pessoas morreram, informa a OMS[1].” Você já se perguntou a respeito do direito que alguém tem de portar o vírus e de querer morrer com ele? Será que as pessoas portadoras são, de fato, responsáveis pela pandemia? Qual a situação do indivíduo nos estados de direito em relação à pandemia? Por que o Estado e o monitoramento dos dados são essenciais para a vigilância da pandemia? Foucault nos auxilia nessa espinhosa tarefa de pensar o coletivo a partir de uma doença que se alastra mais pela mídia do que de um indivíduo ao outro.

Vamos ao biopoder. Para Foucault a modernidade é o controle do corpo, do indivíduo. As técnicas de controle se aprimoram e se tornam um poder disciplinar que nada mais é que uma organização visível desses corpos no espaço. É o controle do individuo, técnica de controle individualizante. O biopoder é massificante, é exercido sobre a multiplicidade dos homens, uma massa global “afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.[2]”. É o surgimento da biopolítica que visa o controle da espécie humana. É uma técnica de controle da massa: “trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc[3]”.

A medição estatística (os dados da OMS nos assustam, a todo tempo... mas por que nos assustam?) e a medição demográfica (a população mundial irá diminuir com a pandemia?) enquanto iniciativas do Estado têm seu advento nesse contexto. É assim que podemos afirmar que o termo estatística surge da expressão em Latim statisticum collegium, palestra sobre os assuntos do Estado, de onde surgiu a palavra em língua italiana statista, que significa "homem de estado", ou político, e a palavra alemã Statistik, designando a análise de dados sobre o Estado. A estatística é uma área do conhecimento que utiliza teorias probabilísticas para explicação de eventos, estudos e experimentos. Tem por objetivo obter, organizar e analisar dados, determinar as correlações que apresentem, tirando delas suas consequências para descrição e explicação do que passou e previsão e organização do futuro. A estatística é também uma ciência e prática de desenvolvimento de conhecimento humano através do uso de dados empíricos. Baseia-se na teoria estatística, um ramo da matemática aplicada. Na teoria estatística, a aleatoriedade e incerteza são modeladas pela teoria da probabilidade. Algumas práticas estatísticas incluem, por exemplo, o planejamento, a sumarização e a interpretação de observações (como no caso de uma pandemia). Porque o objetivo da estatística é a produção da "melhor" informação possível a partir dos dados disponíveis, alguns autores sugerem que a estatística é um ramo da teoria da decisão (ou seja, quem vive e quem morre).

A medição demográfica emerge também como forma de biopoder: a demografia é a ciência que estuda a dinâmica populacional humana. O seu objeto de estudo engloba as dimensões, estatísticas, estrutura e distribuição das diversas populações humanas. Estas não são estáticas, variando devido à natalidade, mortalidade, migrações e envelhecimento. A análise demográfica centra-se também nas características de toda uma sociedade ou um grupo específico, definido por critérios como a Educação, a nacionalidade, religião e pertença étnica. No século XIX, mais precisamente no ano de 1855, Achille Guillard em seu livro Eléments de Statistique Humaine ou Démographie Comparée, usou pela primeira vez o termo demografia.

A biopolítica lida com a população humana. Por isso, Foucault apresenta como exemplos da nova atuação do Estado a criação das instituições públicas para a medicalização da população, a higiene pública, o controle das epidemias e a criação das instituições de assistência à população. A cidade se torna o locus privilegiado da atuação biopolítica: “a natalidade, a morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder[4]”.

Foucault analisa a noção de população. O indivíduo com seu corpo (indivíduo-corpo) ressurge reagrupado num coletivo, múltiplo, numerável, quantificável, contabilizável. A população é o objeto de interesse supremo da biopolítica por que diz é um problema político, intrinsecamente ligado á problemática biológica da espécie. Não teríamos aqui o medo alucinante do mercado capitalista atual de perder mão-de-obra e dos estados tornarem-se doentios a ponto de perderem consumidores e trabalhadores? Não teríamos aqui a verdadeira justificativa para o alarme mundial?

A noção de fenômeno coletivo advem do surgimento dos acontecimentos aleatórios do qual irá se ocupar a biopolítica: “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração[5]”.

Os mecanismos de previdência surgem, assim, em torno dos fenômenos aleatórios, qualidade intrínseca da população de seres vivos. Esses mecanismos disciplinares visam maximizar as forças “mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade[6]”, conseguindo-se assim, sob a espécie humana uma regulamentação.

É assim que a regulamentação surge acoplando-se, aperfeiçoando-se, aglutinando-se ao poder da soberania – poder fazer morrer, criando o poder de fazer viver e deixar morrer. É a objeção, é a negação, a desqualificação progressiva e incisiva da morte: “isso sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade. E, nessa medida, é normal que a morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que há de mais privado. Enquanto, no direito de soberania, a morte era o ponto em que mais brilhava, da forma mais manifesta, o absoluto poder do soberano, agora a morte vai ser, ao contrário, o momento em que o indivíduo escapa a qualquer poder, em sua parte mais privada. O poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado[7]”. Essa regulamentação é a biopolítica.

Vamos à conclusão. Foucault afirma que o biopoder é uma forma de controle e vigilância da sociedade. No caso da sociedade capitalista o número de trabalhadores e consumidores (o chamado mercado) está relacionado ao número efetivo de vivos, já que mortos não consomem, nem trabalham. A OMS está preocupada com a morte coletiva, em proporções alarmantes. Está evidente que a OMS (organização ligada aos Estados) faz isso com total lucidez. Mas me inquieto diante da seguinte questão-provocação: por que não há nenhum movimento global em relação aos mortos por causa do HIV na África? Isso é um problema menor? Por que a pobreza (a pior doença do mundo atual) não está na pauta do dia da OMS? Se há uma pandemia que pode matar qualquer um (será que Obama está livre dela? E a rainha Elizabeth? E o presidente Lula?) todos podem ser vítimas. No caso do biopoder quando grupos sem voz e sem vez estão morrendo não é relevante. Quando os grupos são identificados como “específicos” (africanos com HIV, nordestinos famintos e sedentos, palestinos sem Estado na Faixa de Gaza, trabalhadores sem terra, etc) não há uma mobilização mundial. As perguntas (assim como o H1N1 seja ele o que for) estão no ar... haja máscara para impedir que sejam feitas...

[1] www.g1.globo.com. Acesso: 1]/05/2009.
[2] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 289.
[3] Id.,p.290.
[4] Id.,p. 292.
[5] Id.,p. 293.
[6] Id.,p. 294.
[7] Id.,p. 296.

3 comentários:

  1. Boa coluna, bom tema, ótima contextualização e boa a proposta do conceito de biopoder de Foucault.
    Devo ressaltar que não concordo com um ponto específico da matéria. Quando é dito que:

    "No caso do biopoder quando grupos sem voz e sem vez estão morrendo não é relevante."

    Para mim isso não é um fato verdadeiro a pelo menos 15, 20 anos. Com a intensa globalização, no caso de doenças com grande potencial epidemológico, o problema dos pobres passa a ser um problema de todos. Estados Unidos, Austrália, Israel e Canadá tem que acompanhar com atenção o que vem acontecendo nos países pobres, pois epidemias e pandemias são problemas globais. Não interessa onde surgiu. No caso do vírus HIV, a estória é diferente pois a forma de contágio é bem mais restrita do que por exemplo a gripe suína, ou mesmo a aviária.
    Observe bem: Ospaíses que estão notificando casos da gripe suína além do méxico: Espanha, Inglaterra, Alemanha, Suiça, Holanda, Nova Zelândia, Israel, Estados Unidos e Canadá. Posso ter esquecido algum. Mas fato é que são países que possuem como característica comuns um dinamismo econômico capaz de possuir uma vasta classe de empreendedores globais, capazes de acompanhar negócios nas partes mais distantes do mundo.
    Talvez faça sentido se vc pensar em Estado extremamente flamigerados, com um grau de pobreza muito elevado, em que os empreendedores sequer possuem interesse em fazer investimentos. E a população de tais países extremamente pobres, extremamente limitados de recursos, sequer podem ousar a viajar para outras terras. Neste caso, pode ser verdade. Mas a amostra de países com tais características é cada vez menor. Países assim geralmente são assolados por guerras civis ou desordem governamental de tal ordem que o Estado não pode resguardar os direitos mais fundamentais da população. Se na década de 70 poderíamos selecionar 20 ou 3o píses com estas características, hoje talvez 5 ou 10.
    Em suma, se o mercado entra, e a globalização atua, na minha concepção, a sua análise fica inválida. E hoje o mercado atua na nigéria, no botsuana, na Tanzânia, na República Centro Africana...
    Onde impera o caos, por outro lado, temos o esquecimento. São tantos outros os direitos que precisam ser adquiridos pela população de estados caóticos (como a Somália) que a saúde pública, por incrível que possa parecer, torna-se objetivo secundário de interventores sociais.

    Abraços.
    Leonardo Luiz Silveira da Silva

    Ps: faltou o nome do autor na coluna.

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  2. Fala Leonardo,
    o biopoder é fundamental para entender o que vc está dizendo. Biopoder é a garantia de controle sobre as populações consumidoras/mão-de-obra. Nesse sentido Foucault instiga-nos a perceber um contrle total sobre o corpo/indivíduo e com isso uma garantia de soberania do estado sobre o cidadão. Minha provocação é no sentido: o que é mais importante: uma vida feliz e autonoma ou uma vida vigiada, controlada, policiada pelo Estado? Até que ponto o indívíduo tem poder sobre a própria vida? A OMS é uma instituição global interessada na preservação da população economicamente ativa (e não acho que o HIV seja um caso a se desconsiderar uma vez que não tem vacina, não tem cura, mata populações inteiras de vários países e a OMS não se preocupa com a quebra das patentes, como fez soberanamente o Brasil). A disucussão de Foucault ultrapassa o tempo e nos mostra como os Estados controlam cada vez mais a cada um de nós. Seremos, afinal, livres ou meras marionetes? O Estado divulga dados através da mídia ou a mídia inventa as informações?
    Danilo

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  3. Encontrei o conceito de Biopoder recentemente e hoje essa conexão com a atualidade da influenza A,H1N1 ou gripe suína (com denominações diversas atendendo também a interesses econômicos de produtores de carne suína),enfim.
    Agradeço pela reflexão e concordo com o desinteresse por outras patologias que têm como pano de fundo contextos economicamente desfavorecidos,de pessoas muitas vezes miseráveis.Arrisco dizer que temos tropismo pelo alarmismo (desculpe o eco),pelas situações emergenciais e uma certa preguiça em insistir com problemas que se cronificam.
    Continuo me aprofundando na questão do biopoder e da biopolítica,tentando entender o que se passa na minha área,como Enfermeira em Saúde Pública e cidadã alimentada por esperança.
    Obrigada! Adriana Marques.

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