quarta-feira, 6 de maio de 2009

# 6 - Governo Obama: Uma nova era nas relações entre americanos, palestinos e israelenses?

Obama e Peres



Por Leonardo Luiz Silveira da Silva, 6/5/2009

Nesta terça-feira(5/5/2009), Shimon Peres, velha raposa da política israelense, esteve nos Estados Unidos para se encontrar com o presidente norte-americano Barack Obama. Peres é daqueles sujeitos que as décadas passam e apesar disto o seu nome permanece ligado ao alto escalão do governo. Em um paralelo à política brasileira faria um papel de PMDB. Peres também é autor de livros, dentre eles “O novo Oriente Médio[1]”, obra em que argumenta que uma das formas de apaziguar as relações com os palestinos é a efetivação de políticas por parte de Israel que visem uma melhor qualidade de vida dos palestinos. Como ele mesmo afirmou em um trecho deste livro, “a pobreza é o pai do fundamentalismo religioso”. Afirmou também que a Faixa de Gaza seria uma maravilha em um cenário de paz duradoura. Neste cenário vislumbrado por Peres, a construção de portos e o pleno desenvolvimento da indústria pesqueira seriam importantes alicerces para a promoção de uma excepcional qualidade de vida, o que contrasta atualmente com a paupérrima situação da Faixa de Gaza. Como já foi afirmado que Shimon Peres esteve sempre ligado ao governo, pela menos nas últimas duas décadas e os seus argumentos presentes neste livro não se tornaram práticas efetivas, considero duas possibilidades: a primeira é que Shimon Peres trata-se de um mero demagogo, com discursos politicamente interessantes a um determinado nicho político, mas descompromissado com a efetivação de tais discursos; a segunda é que Peres, apesar de possuir a intenção de efetivar os seus discursos, esbarra em entraves políticos para colocá-los em prática, o que também acaba não sendo suficiente para frustrá-lo e fazer com que a velha raposa largue o bastão do poder.
O encontro com Obama marca o debate entre um presidente americano que adotou um tom de apoio menos explícito a Israel do que o seu antecessor e um governo israelense chefiado pelo primeiro ministro Benjamin Netanyahu, que assumiu o governo em março deste ano com um discurso de endurecimento das relações bilaterais com os palestinos e iranianos. A disposição de Obama de dialogar com Teerã deve no mínimo incomodar o Estado Judeu, a medida que o governo iraniano, na figura de Mahmoud Ahmadinejad, já alegou que Israel deveria ser varrido do mapa.
Segundo a reportagem da folha/UOL[2], Joe Biden, vice-presidente americano, fez declarações fortes a respeito da relação entre palestinos e israelenses:


"Israel tem que trabalhar com a solução de dois Estados", afirmou hoje Biden em discurso ao grupo de lobby pró-israelense Aipac na capital americana. "Vocês não vão gostar que eu diga isto, mas não construam mais assentamentos, derrubem os que já existem e permitam o livre trânsito dos palestinos."


Biden tocou desta forma em dois dos assuntos mais polêmicos no que diz respeito ao processo de negociação entre palestinos e israelenses. Os assentamentos sempre foi uma questão muito dura de ser debatida internamente em Israel. O governo Israelense incentivou em dado momento de sua jovial história enquanto Estado moderno, a migração de famílias para as áreas que foram ocupadas devido às vitórias militares posteriores a Independência do país, em 1948. Recentemente, assentamentos foram destruídos na Faixa de Gaza e foi necessário um efetivo militar para garantir a retirada de colonos judeus. A resistência para a retirada foi forte e houve famílias que receberam os soldados com muita hostilidade, com água quente e spray de pimenta. Na Cisjordânia a situação é ainda mais complexa. Existe um número ainda maior de colônias espalhadas por este território. Além disso, a porção oriental da Cisjordânia é rica em recursos hídricos subsuperfície, fazendo parte da bacia do Rio Jordão. Alguns árduos defensores da causa israelense, como Alan Dershowitz[3], apresentam um ponto de vista não muito comum no que diz respeito a situação dos assentamentos israelenses na Cisjordânia:


“Os árabes e palestinos recusaram-se a fazer a paz antes de haver uma única colônia, e os palestinos recusaram-se a fazer paz quando Ehud Barak ofereceu acabar com as colônias.(DERSHOWITZ, 2004, p.234)”


A retórica de Dershowitz é a defesa de Israel em relação ao argumento de que a colonização israelense da margem ocidental e de Gaza é um grave empecilho a paz. Não concordo com os argumentos deste autor, mas eles servem a nos mostrar que, se tratando de conflito palestino-israelense, o que mais podemos recolher é distintos pontos de vista a partir da mesma questão. Gaza mostrou-se um caso menos complexo. Trata-se de um território com elevadíssima densidade demográfica e graves problemas sociais. Retirar os colonos dali, com financiamento estatal, somente poderia esbarrar na lógica defendida pelos segmentos mais ortodoxos da sociedade judaica que associam o direito à terra ao sagrado. A Cisjordânia, por outro lado, é responsável por um significativo percentual do abastecimento hídrico de Israel, tornando-se uma questão sacra, econômica e política, à medida que em um cenário de concessão de ampla autonomia à autoridade palestina, poderia forçar Israel e Jordânia voltar a mesa e renegociar parte de seu tratado de paz assinado em 1994.
A visita de Shimon Peres aos Estados Unidos deve perder em importância para a visita programada de Netanyahu, marcada para o fim de Maio. Netanyahu é um ex-rival de Peres na política israelense, tendo inclusive rejeitado parte dos termos de paz que Yitzhak Rabin assinou em 1994 nos acordos conhecidos como Acordos de Oslo. Basta saber o que será conversado entre Netanyahu e Obama, naquele que será um verdadeiro teste diplomático para o recém empossado presidente americano, que ficará entre a cruz e a espada diante do linha-dura da política israelense, visto que, o discurso da base governamental de Obama vai de encontro com o perfil histórico do estadista judeu.

Citações


[1] Peres, Shimon. O Novo Oriente Médio. São Paulo, Relume Dumará, 1996.
[2] Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u561003.shtml
[3] Dershowitz, Alan. Em defesa de Israel. São Paulo. Nobel, 2004

sábado, 2 de maio de 2009

Gripe suína e biopoder

Danilo Arnaldo Briskievicz

Hoje vamos conversar sobre a gripe suína (H1N1) e o biopoder, conceito criado pelo filósofo francês Michel Foucault.

Vamos aos fatos: “o número de casos de vírus gripal influenza A (H1N1), nova forma adotada para chamar a gripe suína, confirmados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) praticamente duplicou nas últimas 24 horas, e agora chega a 615, incluindo 17 mortes em 15 países. No Brasil, há sete casos suspeitos, mas nenhuma confirmação. Só o México reportou 397 casos confirmados de infecções humanas causadas pelo novo vírus. Dezesseis pessoas morreram, informa a OMS[1].” Você já se perguntou a respeito do direito que alguém tem de portar o vírus e de querer morrer com ele? Será que as pessoas portadoras são, de fato, responsáveis pela pandemia? Qual a situação do indivíduo nos estados de direito em relação à pandemia? Por que o Estado e o monitoramento dos dados são essenciais para a vigilância da pandemia? Foucault nos auxilia nessa espinhosa tarefa de pensar o coletivo a partir de uma doença que se alastra mais pela mídia do que de um indivíduo ao outro.

Vamos ao biopoder. Para Foucault a modernidade é o controle do corpo, do indivíduo. As técnicas de controle se aprimoram e se tornam um poder disciplinar que nada mais é que uma organização visível desses corpos no espaço. É o controle do individuo, técnica de controle individualizante. O biopoder é massificante, é exercido sobre a multiplicidade dos homens, uma massa global “afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença, etc.[2]”. É o surgimento da biopolítica que visa o controle da espécie humana. É uma técnica de controle da massa: “trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc[3]”.

A medição estatística (os dados da OMS nos assustam, a todo tempo... mas por que nos assustam?) e a medição demográfica (a população mundial irá diminuir com a pandemia?) enquanto iniciativas do Estado têm seu advento nesse contexto. É assim que podemos afirmar que o termo estatística surge da expressão em Latim statisticum collegium, palestra sobre os assuntos do Estado, de onde surgiu a palavra em língua italiana statista, que significa "homem de estado", ou político, e a palavra alemã Statistik, designando a análise de dados sobre o Estado. A estatística é uma área do conhecimento que utiliza teorias probabilísticas para explicação de eventos, estudos e experimentos. Tem por objetivo obter, organizar e analisar dados, determinar as correlações que apresentem, tirando delas suas consequências para descrição e explicação do que passou e previsão e organização do futuro. A estatística é também uma ciência e prática de desenvolvimento de conhecimento humano através do uso de dados empíricos. Baseia-se na teoria estatística, um ramo da matemática aplicada. Na teoria estatística, a aleatoriedade e incerteza são modeladas pela teoria da probabilidade. Algumas práticas estatísticas incluem, por exemplo, o planejamento, a sumarização e a interpretação de observações (como no caso de uma pandemia). Porque o objetivo da estatística é a produção da "melhor" informação possível a partir dos dados disponíveis, alguns autores sugerem que a estatística é um ramo da teoria da decisão (ou seja, quem vive e quem morre).

A medição demográfica emerge também como forma de biopoder: a demografia é a ciência que estuda a dinâmica populacional humana. O seu objeto de estudo engloba as dimensões, estatísticas, estrutura e distribuição das diversas populações humanas. Estas não são estáticas, variando devido à natalidade, mortalidade, migrações e envelhecimento. A análise demográfica centra-se também nas características de toda uma sociedade ou um grupo específico, definido por critérios como a Educação, a nacionalidade, religião e pertença étnica. No século XIX, mais precisamente no ano de 1855, Achille Guillard em seu livro Eléments de Statistique Humaine ou Démographie Comparée, usou pela primeira vez o termo demografia.

A biopolítica lida com a população humana. Por isso, Foucault apresenta como exemplos da nova atuação do Estado a criação das instituições públicas para a medicalização da população, a higiene pública, o controle das epidemias e a criação das instituições de assistência à população. A cidade se torna o locus privilegiado da atuação biopolítica: “a natalidade, a morbidade, das incapacidades biológicas diversas, dos efeitos do meio, é disso tudo que a biopolítica vai extrair seu saber e definir o campo de intervenção de seu poder[4]”.

Foucault analisa a noção de população. O indivíduo com seu corpo (indivíduo-corpo) ressurge reagrupado num coletivo, múltiplo, numerável, quantificável, contabilizável. A população é o objeto de interesse supremo da biopolítica por que diz é um problema político, intrinsecamente ligado á problemática biológica da espécie. Não teríamos aqui o medo alucinante do mercado capitalista atual de perder mão-de-obra e dos estados tornarem-se doentios a ponto de perderem consumidores e trabalhadores? Não teríamos aqui a verdadeira justificativa para o alarme mundial?

A noção de fenômeno coletivo advem do surgimento dos acontecimentos aleatórios do qual irá se ocupar a biopolítica: “a biopolítica vai se dirigir, em suma, aos acontecimentos aleatórios que ocorrem numa população considerada em sua duração[5]”.

Os mecanismos de previdência surgem, assim, em torno dos fenômenos aleatórios, qualidade intrínseca da população de seres vivos. Esses mecanismos disciplinares visam maximizar as forças “mediante mecanismos globais, de agir de tal maneira que se obtenham estados globais de equilíbrio, de regularidade[6]”, conseguindo-se assim, sob a espécie humana uma regulamentação.

É assim que a regulamentação surge acoplando-se, aperfeiçoando-se, aglutinando-se ao poder da soberania – poder fazer morrer, criando o poder de fazer viver e deixar morrer. É a objeção, é a negação, a desqualificação progressiva e incisiva da morte: “isso sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade. E, nessa medida, é normal que a morte, agora, passe para o âmbito do privado e do que há de mais privado. Enquanto, no direito de soberania, a morte era o ponto em que mais brilhava, da forma mais manifesta, o absoluto poder do soberano, agora a morte vai ser, ao contrário, o momento em que o indivíduo escapa a qualquer poder, em sua parte mais privada. O poder já não conhece a morte. No sentido estrito, o poder deixa a morte de lado[7]”. Essa regulamentação é a biopolítica.

Vamos à conclusão. Foucault afirma que o biopoder é uma forma de controle e vigilância da sociedade. No caso da sociedade capitalista o número de trabalhadores e consumidores (o chamado mercado) está relacionado ao número efetivo de vivos, já que mortos não consomem, nem trabalham. A OMS está preocupada com a morte coletiva, em proporções alarmantes. Está evidente que a OMS (organização ligada aos Estados) faz isso com total lucidez. Mas me inquieto diante da seguinte questão-provocação: por que não há nenhum movimento global em relação aos mortos por causa do HIV na África? Isso é um problema menor? Por que a pobreza (a pior doença do mundo atual) não está na pauta do dia da OMS? Se há uma pandemia que pode matar qualquer um (será que Obama está livre dela? E a rainha Elizabeth? E o presidente Lula?) todos podem ser vítimas. No caso do biopoder quando grupos sem voz e sem vez estão morrendo não é relevante. Quando os grupos são identificados como “específicos” (africanos com HIV, nordestinos famintos e sedentos, palestinos sem Estado na Faixa de Gaza, trabalhadores sem terra, etc) não há uma mobilização mundial. As perguntas (assim como o H1N1 seja ele o que for) estão no ar... haja máscara para impedir que sejam feitas...

[1] www.g1.globo.com. Acesso: 1]/05/2009.
[2] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 289.
[3] Id.,p.290.
[4] Id.,p. 292.
[5] Id.,p. 293.
[6] Id.,p. 294.
[7] Id.,p. 296.

terça-feira, 28 de abril de 2009

# 5 - Gripe suína e a globalização das doenças


Por Leonardo Luiz Silveira da Silva, 29/4/2008


A gripe suína, variante do vírus da influenza, que pode ser contaminada pelo contato entre pessoas e animais contaminados, vem causando preocupação. Com a nova variação do vírus que pode ser passado entre humanos, a Organização Mundial da Saúde (OMS), na figura de sua diretora geral Margareth Chan, afirmou que a situação é muito grave e que se trata de um problema de ordem internacional, com sérios riscos de se tornar uma pandemia[1]. Apesar do alerta, a situação não pode ser encarada com pânico, a medida em que, na história recente, o vírus Ebola e o causador da gripe do frango também foram capazes de causar mobilizações similares. Em uma reportagem de fevereiro de 2002, a revista National Geographic[2] nos traz um apanhado sobre a situação recente dos surtos de doenças no mundo:


“O ebola é um dos exemplos mais conhecidos, ainda que, no final das contas, a violência deste vírus acabe prejudicando a si próprio. Ele destrói as vítimas humanas com tanta rapidez que reduz e muito suas oportunidades de se transferir de uma pessoa para a outra(...)
(...) os vírus aparentados da dengue hemorrágica e da febre amarela – ambos supostamente eliminados na década de 1940 – hoje voltaram a ser encontrados em muitas regiões da América do Sul e da América Central, e recentemente registraram casos de dengue no Caribe e no Sul dos Estados Unidos. Devido o aumento de pessoas no planeta – e, portanto, dos locais de reprodução para o mosquito -, há todas as condições para a eclosão de um desastre de proporções hemisféricas(...)
(...) A tuberculose tornou-se resistente aos antibióticos modernos na antiga União Soviética e em outras partes do mundo(...)
(...) Além disso, a malária, que segundo estatísticas matam 1,2 milhão de pessoas por ano, sendo mais da metade crianças, também adquire resistência aos medicamentos atuais(...)
(...) A relação dos agentes patogênicos é longa: vírus da febre do vale Rift, hantavírus, vibrião da cólera. Nos últimos 25 anos, pelo menos 20 doenças importantes reapareceram sob formas novas e mais letais ou então em formas imunes aos medicamentos. No mundo todo, os cientistas descobriram pelo menos 30 enfermidades humanas desconhecidas e sem cura. Entre elas estão a doença de Marburg e a Aids.” (1995, p.7)

A pobreza, a desinformação, o tratamento inadequado que colabora para a resistência de viroses no que diz respeito aos tratamentos convencionais, são sem dúvidas fatores que colaboram para o quadro descrito pela reportagem da revista. Há de se ressaltar o papel da globalização como veículo de transporte das doenças entre os continentes. Laurie Garrett[3], em “As novas doenças em um mundo em desequilíbrio” afirma que


“O grande aumento da movimentação de gente, mercadorias e idéias pelo mundo é a força motriz por trás da globalização da moléstia. Afinal, não apenas as pessoas viajam mais, mas viajam bem mais depressa e vão a muitos mais lugares do que antigamente. Um hospedeiro de um micróbio fatal à vida consegue embarcar com facilidade em um jato e estar em outro continente quando os sintomas da doença eclodem. As próprias cargas de um jato podem carregar insetos que levam agentes infecciosos para um novo cenário ecológico. Poucos habitantes do globo permanecem de fato isolados e intocados, à medida que os turistas e outros viajantes penetram nas áreas mais remotas e anteriormente inacessíveis em busca de novos panoramas, negócios ou recreção.”

Claramente os anecúmenos[4] se tornam cada vez mais desbravados, criando possibilidade do contato do homem com novas formas de doenças não conhecidas. A intensificação do processo de globalização colabora fundamentalmente para que o problema no México se torne uma preocupação mundial, como afirmou Margareth Chan. Dias depois de ser classificada como epidemia no México, a gripe suína já estava sendo investigada em três cidadãos em Belo Horizonte que tinham passado as férias no México e nos Estados Unidos. Recentemente comprovou-se casos no continente europeu. Algumas doenças conseguem ser erradicadas. Outras acompanham o homem a centenas de anos, que acaba aprendendo a conviver com ela. Parece que é este o caso que vem se desenhando com a Aids, doença reconhecida desde 1981. A tuberculose e a lepra, por exemplo, são antiqüíssimas. Stefan Cunha Ujvari[5], em “A história da humanidade contada pelos vírus”, ressalta que a própria natureza, capaz de criar os nossos inimigos, pode nos oferecer modelos para vencê-los, como fica claro neste trecho:


(...) os outros animais e vegetais, apesar de serem considerados seres inferiores, auxiliaram-nos nos avanços da ciência do século XX. Seguimos alguns de seus exemplos como modelos para nossas descobertas.(...)
(...) Inúmeras espécies vegetais produzem poderosas substâncias contra bactérias e fungos. Outras combatem vírus Os microorganismos que ousam invadir e se reproduzir nesses vegetais enfrentam um arsenal de substâncias antimicrobianas. Os tipos de moléculas são inúmeros e estão presentes em diversos vegetais, como eucaliptos, carvalho, pimenta, cravo, chá, cebola, maça e feijão. O poder de proteção contra a invasão de microorganismos também se estende aos animais. Substâncias poderosas contra bactérias são lançadas por lampreias, peixes cartilaginosos, siris, caranguejos, mariscos, camarões, caramujos e lagostas.(2008, p.158)

O argumento de Stefan Ujvari mostra-nos que a expansão desordenada da humanidade pode ao mesmo tempo colocar o homem em contato com novas doenças e extinguir seres vivos que poderiam ser chave da cura de tais doenças. Este é mais um argumento que reforça a séria necessidade do pensamento do desenvolvimento sustentável a partir da nossa geração em benefício das gerações futuras.
A globalização, que por um lado facilita a propagação das doenças pelos assuntos já comentados, pode também ser a chave para a prevenção e para a estagnação das ameaças virais e bacterianas. À reboque do processo de globalização está a globalização das notícias(da informação) que é capaz de fazer com que os métodos preventivos possam ser adotados em determinados países antes mesmo que em uma dada população seja registrado o primeiro caso de uma doença específica. No caso da gripe suína, a atualização diária dos países com casos confirmados e suspeitos fazem com que o ministério da saúde do Brasil possa tomar alguns cuidados com vôos para destinos que estão marcados pela alta incidência da doença. Temos no episódio mais uma faceta da globalização: o processo que permite a ocorrência das “doenças globais” e que oferece instrumentos antes inimagináveis para o seu combate.


Citações

[1]http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1098148-5602,00-OMS+DIZ+QUE+SURTO+DE+GRIPE+SUINA+E+MUITO+GRAVE+E+PODE+VIRAR+PANDEMIA.html
[2] National Geographic, fevereiro de 2002, página 93.
[3] Garrett, Laurie. As novas doenças em um mundo em desequilíbrio. Rio de Janeiro, Nova fronteira, 1995.
[4] Áreas desabitadas ou com fraquíssimo povoamento devido a condições hostis como a extrema aridez, a floresta equatorial, grandes elevações, interiores continentais e condições climáticas muito rigorosas.
[5] Ujvari, Stefan Cunha. A história da humanidade contada pelos vírus, bactérias, parasitas e outros microorganismos. São Paulo, Contexto, 2008.

sábado, 25 de abril de 2009

Maquiavel, sociedade civil e Estado


Danilo Arnaldo Briskievicz

Sociedade: Nicolau Maquiavel estuda a sociedade pela "análise efetiva dos fatos humanos[1]". Não se prende em especulações teológicas ou metafísicas. Seu conceito de sociedade pressupõe uma definição da psicologia humana e outra da história. A sociedade é constituída por homens de natureza ambígua, contraditória. Querem não ser dominados enquanto o Estado os pretende dominar. Para Maquiavel, os homens não são, como se pensava até então, devotados essencialmente ao bem: "Maquiavel conclui, por meio do estudo dos antigos e da intimidade com os potentados da época, que os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas a s cidades e em todos os povos[2]".

Maquiavel define a história como constituída por ciclos incessantes. Os fatos históricos repetem-se aparentemente diferentes, mas essencialmente iguais. Como os fatos são eternamente recorrentes, conhecer a dinâmica deles e sua recorrência é importante para o estudo do presente. Importante, claro, para conhecer e atuar na sociedade de maneira eficaz. A sociedade é constituída por homens concretos e históricos, que precisam de um governo centralizado e forte para moldar a natural maldade humana, impedindo que seja desagregadora social. Isso significa que o príncipe, conhecedor da psicologia humana e da história que se desenvolve em ciclos recorrentes, é a personagem que deve ordenar a sociedade: "não existiria, contudo, uma ordem ideal, com validade absoluta, independente da organização social concreta dos povos. O povo é, para Maquiavel, uma matéria que aguarda sua forma e a engenharia da ordem parte da análise da situação social, não resultando do arbítrio do fundador de Estados, mas de sua capacidade para captar, num momento de gênio, aquela forma desejável e de sua disposição para impô-la sem vacilação[3]".

Quem poderá impor a ordem à sociedade? O Estado. E quem controla o Estado e sujeita a sociedade às suas leis e ordens? O príncipe. Assim, concluímos que a sociedade de que fala Maquiavel é constituída por homens que podem se apresentar como maus, traidores, malignos. Mas esses mesmos homens devotados ao mal encontram-se numa necessidade de organização social que seja para eles um respeito à sua liberdade e não apenas o controle fútil da cidadania. Essa mesma sociedade se forma historicamente em ciclos que se repetem, são recorrentes. Essa sociedade – mundana, concreta, disforme, maligna deve ser domada pelo príncipe. Ou o príncipe materializa a forma e a engenharia da ordem social ou não poderá manter seu poder e ampliá-lo: "para Maquiavel, o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo estado[4]".

O Estado: o Estado, sua formação, sua fundação e sua manutenção são temas recorrentes no texto de O Príncipe. Maquiavel afirma “que deseja escrever coisa que preste, útil; por isso não tratará do Estado como deve ser mas como é; nada melhor, para que o governante planeje bem suas ações. A ação deliberada, planejada, eficaz se dá no plano do que ele chama de virtù e que nada tem a ver com a virtude, no sentido cristão ou moral. Mas ninguém realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de nossas ações, diz, se deve à virtù, metade à fortuna[5].” Partindo da observação da Itália do Renascimento, época de Maquiavel, podemos fazer algumas anotações sobre seu modo de caracterizar o Estado. Na Itália de sua época, reinava uma enorme confusão: "a tirania impera em pequenos principados, governados despoticamente por casas reinantes sem tradição dinástica ou de direitos contestáveis. A ilegitimidade do poder gera situações de crise e instabilidade permanen­te. Somente o cálculo político, a astúcia, a ação rápida e fulminante contra os adversários são capazes de man­ter o príncipe. Esmagar ou reduzir à impotência a oposição interna, atemorizar os súditos para evitar a subversão e realizar alianças com outros principados constituem o eixo da administração. Como o poder se funda exclusivamente em atos de força, é previsível e natural que pela força seja deslocado, deste para aquele senhor. Nem a religião, nem a tradição, nem a vontade popular legitimam o soberano e ele tem de contar exclusivamente com sua energia criadora. A ausência de um Estado central e a extrema multipolarização do poder criam um vazio, que as mais fortes individuali­dades capacitam-se a ocupar[6]."

O Estado, para impedir a multipolarização do poder, devido à ação dos condottieri – especialistas na técnica militar, mercenários da segurança nacional, necessitava ser centralizado, comandando pela mão-de-ferro de um soberano – o príncipe. O príncipe por suas vez, deveria estar aparelhado de uma guarda nacional fiel, dócil e obediente, para manter a ordem interna do Estado e lutar por novos domínios e pela manutenção do seu território (soberania). Por isso, "face à Itália da sua época – dividida, corrompida, sujeita às invasões externas – Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário a sua unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam imprescindível o surgimento de um homem virtuoso capaz de fundar um Estado. Era preciso, enfim, um príncipe[7]." O Estado para Maquiavel é a organização da relação de forças entre o comando e a obediência. O Estado precisa usar da coerção para se manter poderoso em relação aos conflitos internos e externos. Uma Itália armada para coibir a desordem interna e conquistar novos domínios era necessária. Assim, Maquiavel funda uma nova visão política de Estado: "desde a primeira frase do príncipe, o termo Estado, sem ser definido de modo rigoroso, designa uma configuração política que implica a organização da relação de forças entre o comando e a obediência: ele caracteriza, na sua "verdade efetiva", o "novo principado" que Maquiavel sonda[8]". O Estado para Maquiavel tem uma função reguladora. Uma nação deve ser regulada pelo Estado: "para Maquiavel, o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo Estado. Em função do modo pelo qual os bens são compartilhados, as sociedades concretas as­sumem diferentes formas. Assim, onde persista ou pos­sa persistir uma relativa igualdade entre os cidadãos, o fundador de Estados deve estabelecer uma república. Ocorrendo o contrário, manda a prudência que seja constituído um principado. Se não proceder assim, o governante formará um Estado desequilibrado e sem harmonia, que não poderá subsistir por muito tempo[9]".

Qual o fundamento do Estado para Maquiavel? A ordem. Essa mesma ordem, em vista de uma Itália em profunda confusão política externa e interna, seria o objetivo maior de Estado regulador e centralizador, apesar de não ser previamente prevista: “o núcleo da organização do Estado residiria na ordem, que pode manifestar-se sob várias formas, mas que se apresentaria basicamente como principados ou como repúblicas. As repúblicas apresentariam três modalidades: a aristocrática, como Esparta, em que uma maioria de governados encontrava-se subordinada a uma minoria de governantes; a democracia restrita, na qual se dá o contrário, como ocorreu em Atenas; e a democracia ampla, quando a coletividade se autogo­verna, fenômeno encontrado em Roma após a insti­tuição dos tribunos da plebe e a admissão do povo à magistratura. Não existiria, contudo, uma ordem ideal, com va­lidade absoluta, independente da organização social concreta dos povos[10]". Na busca da ordem, de um estado articulado na possibilidade do uso da força, quem estaria autorizado a exercer a função de governante, a função de chefe-de-Estado? Quem seria este fundador de Estados? O príncipe virtuoso e afortunado: "o fundador de Estados não é, para Maquiavel, um homem qualquer, mas uma personalidade fora do co­mum, dotada de uma ética superior, que lhe faculta o uso de meios extraordinários para a organização de remos ou repúblicas[11]." Por isso, conclui-se que o homem de Estado de Maquiavel, a partir da leitura do Capítulo XVIII de O Príncipe é aquele que realiza "grandes coisas": o "que conta na conduta do homem de Estado é o fim, a "grande coisa", e a realização do fim torna lícitas ações, tais como não observar os pactos estabelecidos, condenadas pelo código moral, ao qual devem obedecer os comuns mortais[12]".

[1] MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo:Nova Cultural, 1999, p.16. Danilo A. Briskievicz é mestre em Filosofia Social e Política pela UFMG.
[2] Ibid., 17.
[3] Ibid., 21.
[4] Ibid., 20.
[5] RIBEIRO, Renato Janine. Maquiavel. Disponível em http://www.renatojanine.pro.br
[6] MAQUIAVEL. Op. Cit., p. 6-7.
[7] WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da Política 1. São Paulo: Ática, 2000, p. 21.
[8] GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 19.
[9] MAQUIAVEL. Op. Cit., p.20.
[10] Ibid., p.20-21.
[11] Loc. Cit.
[12] BOBBIO, Norberto. Teoria geral da Política. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.194.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O cotidiano urbano e a percepção do espaço-tempo geográfico

Grafite no bairro de Cidade Tiradentes, em São Paulo, em 2008. (Fernando Moraes)*

Por Leonardo Antônio Muniz [1]

Em uma metrópole de grande porte, como Belo Horizonte, milhares de pessoas vivem e convivem entre si, compartilhando do mesmo conjunto de processos de construção da estrutura cotidiana. Na metrópole moderna, regida pela estrutura capitalista, as pessoas dividem funções e deveres para que o coletivo aperfeiçoe e mantenha a incessante reprodução do capital e da sociedade pelo espaço. Este mesmo capital é responsável por controlar quase todas as relações e processos de produção e controle sociais. Ele se reproduz a cada gesto e atitude no cotidiano das pessoas que compartilham do mesmo sistema social.

Quando residimos por muito tempo em um determinado lugar, podemos conhecê-lo intimamente, porém a sua imagem pode não ser nítida, a menos que possamos vê-lo de fora e pensemos em nossa experiência. A outro lugar pode faltar o peso da realidade porque conhecemos apenas de fora – através dos olhos de turista e da leitura de um guia turístico. É uma característica da espécie humana, produtora de símbolos que seus membros possam apegar-se apaixonadamente a lugares de grande tamanho, como uma Nação-Estado dos quais eles só podem ter uma experiência direta limitada. (TUAN, 1983, p. 96)

Tanto os espaços materiais quanto os sociais, são impregnados por uma lógica de funcionamento e articulação dos movimentos, ações e fluxos espaciais. Parece que a lógica da linha de produção (de Ford e Taylor) onde os movimentos, ações e fluxos acabam por se incorporar no processo de produção do espaço. Espaço este que não se realiza apenas materialmente, mas que se faz construir por idéias e lógicas.

Na metrópole, o simples movimento passa a fazer parte de algo maior e mais abstrato que a realidade. Fica difícil dizer em uma metrópole quem efetiva a primeira ação entre a idéia e a estrutura material. Neste habitat, Hegel e Marx disputam uma batalha de pensamentos que não parece ter fim. Mas, afinal de contas, quem parece possuir a melhor explicação para responder aos mistérios deste enigma da metrópole? Aliás, existe uma explicação para os dilemas e contradições produzidos por esta estrutura cotidiana construída pelo capital?

Estas parecem ser perguntas de difícil resolução, mas que são de fundamental importância para que se possa entender melhor a articulação e a formação dos processos que estruturam o cotidiano de uma metrópole.

Contribuindo para este debate, LEFEBVRE (1999: 38) realiza o seguinte comentário:

O urbano (o espaço urbano, a paisagem urbana), não o vemos. Nós ainda não o vemos. Será simplesmente o olho formado (ou deformado) pela paisagem anterior que não pode ver um novo espaço? Tratar-se-á simplesmente do olhar cultivado pelos espaços aldeões, pela magnitude das fábricas, pelos monumentos das épocas passadas? Há isso, como há mais e outra coisa. Não se trata somente de uma ausência de educação, mas de uma ocultação. O que olhamos, na verdade, não enxergamos. Quantas pessoas percebem "perspectivas", ângulos e contornos, volumes, linhas retas ou curvas, mas não podem ver, nem conceber, percursos múltiplos, espaços complexos! Não podem saltar do cotidiano ¾ fabricado segundo as coações da produção industrial e do consumo dos produtos da indústria ¾ para o urbano, que se libertaria desses determinismos e coações. Não sabem construir uma paisagem, compondo e propondo uma idéia de feiúra e beleza especificamente urbanas.(...).

No filme Baraka e no filme Koyaanisqatsi [2] o cotidiano da metrópole é retratado por um constante fluxo, onde a organização do espaço e tempo geográfico é tomada como princípio de visualização dos diversos processos que estruturam o cotidiano. Além disto, o filme mostra, através de diferentes cenários humanos, as contradições existentes na sociedade capitalista moderna.

Em um momento dos filmes, a multidão conduzida pelos espaços urbanos é comparada á pintos de granja que são separados, vacinados e conduzidos por uma esteira mecânica. Já em outro momento, operários de uma fábrica de salsichas operam uma máquina que conduz as diversas fileiras de salsichas produzidas através de esteiras que levam o produto à próxima fase de produção; logo depois, aparece uma cena de pessoas subindo uma escada rolante, dando a entender que as pessoas estão sendo tratadas como salsichas em uma linha de produção. O processo de mecanização e controle dos espaços parece até refletir um constante movimento de construção e reprodução de contradições. Com relação ao fluxo das metrópoles, BENJAMIM [3] analisa o cotidiano da cidade de Londres fazendo o seguinte comentário:

(...) Quando se vagou alguns dias pelas calçadas das ruas principais, só então se percebe que esses londrinos tiveram de sacrificar a melhor parte de sua humanidade para realizar todos os prodígios da civilização... O próprio tumulto das ruas tem algo de repugnante, algo que revolta a natureza humana. (...). E afinal, não terão todas elas que se esforçar pela própria felicidade através das mesmas vias e meios? E, no entanto, passam correndo uns pelos outros, como se não tivessem absolutamente nada em comum, nada a ver uns com os outros, e, no entanto, o único acordo tácito entre eles é o de que cada um conserve o lado da calçada á sua direita, para que ambas as correntes da multidão, de sentido opostos, não se detenham mutuamente; e, no entanto, não ocorre a ninguém conceder ao outro um olhar sequer. (...).

Este fluxo irracional aos quais as pessoas são acometidas em suas vidas diárias nos grandes centros urbanos demonstra uma parte da alienação produzida pelo capital na estruturação deste cotidiano. Os seres humanos passam a fazer parte da estrutura imaginada por aqueles que detêm o capital nas grandes metrópoles. O ser humano passa a ser desumanizado pelo capital, ao passo que a natureza passa a ser humanizada. Um exemplo disto esta no tratamento dado a um animal de um zoológico, que ganha uma casa especialmente desenhada para atender as suas necessidades naturais; ao passo que aos seres humanos é permitido um tratamento desumano, podendo este ser jogado na rua sem o mínimo de condições necessárias para a sua sobrevivência.

O fruto do trabalho parece ser o mais importante de tudo para o capital. Os conceitos e as definições parecem não possuir sentido lógico diante deste impulso abstrato de domínio e manipulação da natureza pelo capital. O homem passa a ser um mero elemento constituinte da paisagem urbana. A divisão social e territorial da produção tornou o ser humano incapaz de perceber e compreender a abrangência desta estruturação cotidiana da metrópole ao qual pertence.

Esta alienação estaria ligada, segundo GUATTARI (1985: 112), aos processos de desterritorialização do espaço através de seu alisamento, “(...) aonde não há mais os mesmos tipos de circunscrições ou limitações por emblemas étnicos ou religiosos, por exemplo”. Segundo este mesmo autor, essa operação de tornar os espaços lisos, se operaria, por enquanto, através da Coca-Cola, da TV Globo, das novelas que também são assistidas em Paris, por exemplo.

Esses equipamentos coletivos seriam assim, responsáveis pelo surgimento da cidade capitalista no momento em que... “(...) deixam de ser sub-conjunto da circunscrição urbana para uma situação em que a cidade é uma resultante da intersecção desses equipamentos”. (GUATTARI, ibidem: 111).

Desta forma, os diversos fluxos integrariam o conjunto urbano e o transformaria em uma cidade mundo (segundo Braudel) que contribuiria para a inversão entre circunscrição urbana/equipamentos coletivos. Assim, esta inversão provocaria uma institucionalização das normas e reestruturação dos conceitos sociais necessários à manutenção destes processos capitalistas de estruturação e homogeneização (alisamento) do espaço. Diante deste assunto, GUATTARI (ibidem: 115) realiza a seguinte exemplificação:

(...) Nesse exemplo, dá para ver bem, o que pode acontecer com o conceito de família que, nessas condições é completamente ilusório. Claro que não estou me referindo à família brasileira, mas sim à boa família americana ou francesa. O que a gente chama de família nessas condições é um grupo de pessoas que vivam num espaço programado. (...) Seria usar o mesmo raciocínio para se referir ás pessoas que ocupam um mesmo equipamento doméstico capitalista ¾ a casa. Eles estão lá em certas horas do dia. Em certas horas precisas estão todos olhando a TV, outra hora eles estão trepando...

Da mesma forma que os equipamentos coletivos estruturam o espaço urbano, dando, por exemplo, novo sentido as ruas e aos fluxos, ele reestrutura os conceitos e normas institucionais a fim de permanecer e sobreviver socialmente. As instituições ligadas aos movimentos de reivindicação popular, nas últimas décadas, vêm passando por esta mesma reestruturação de normas e conceitos.

Basicamente, todas as instituições sociais estão passando por esta reestruturação de aplainamento espacial. Este processo de aplainamento espacial das instituições está provocando um confronto entre o real e o institucional. Para se ter uma vaga idéia, basta citar a forma autoritária no qual o Estado e a especulação imobiliária de mercado acabam por conceber o espaço urbano como mercadoria, espaço de consumo e reprodução do capital.

O Estado, como instituição, além de regularizar os investimentos em infra-estrutura, também regulariza a relação capital-trabalho e, portanto, serve de instrumento essencial ao desenvolvimento capitalista, e contribui para a manutenção/aumento da exploração da força de trabalho. Com essa exploração o Estado admite e reforça a segmentação de grande parte da população do sistema de acesso a bens de consumo e a moradia, nos moldes e a serviço do modo capitalista de produção.

Contribuindo com alguns elementos a este debate, KURZ (1999: 40) faz a seguinte afirmação:

O Estado, o outro volante da máquina de alienação ao lado do dinheiro, recebe assim, por sua vez, uma natureza dupla. Do ponto de vista histórico ele assume, já em sua primitiva, forma moderna nascente, absolutista, burguês-revolucionária e ditatorial, por um lado, o papel de parteira do sistema produtor de mercadorias e, por outro, torna-se componente imanente deste último; do ponto de vista institucional ele serve, por um lado, para assegurar as condições que apóiam o capitalismo, e por outro, é promovido a instância reguladora que interfere ativamente no processo de reprodução do trabalho morto, tão logo os setores "improdutivos" da infra-estrutura (ciências, tratamento dos detritos, assistência social e de saúde, educação, reparo dos processos de destruição social-ecológicos etc.) começam a sufocar a estrutura de automovimento do dinheiro; do ponto de vista ideológico, por fim, o Estado apresenta-se, por um lado, como Moloch, "canibal" (Glucksman, 1978) e monstro leviatânico que constantemente ameaça agredir a "verdadeira" subjetividade burguesa e, por outro, porém, como deus ex machina, como instância à qual se recorre sempre que há fricções e sofrimentos resultantes da socialização negativa.

Diante deste processo, as classes de menor poder aquisitivo que são privadas do direito de "consumir" o espaço urbano, pela compra da moradia posta como mercadoria, acabam por revidar através da mobilização e construção de espaços coletivos de moradia pelas próprias mãos.

Em trabalhos que realizei junto ao Conjunto Taquaril, sob a orientação do Professor William Rosa [4], situado em uma área que se faz distante do centro tradicional de Belo Horizonte, percebi que a experiência de vida coletiva desta comunidade é a prova viva deste tipo de esforço comunitário por partes de um grupo de pessoas que se viram segregadas por este processo de espoliação urbana, e que tentam mudar esta lógica perversa de apropriação do espaço através de ações coletivas. Contudo, deve-se mencionar que este sentimento de identidade e mobilização coletiva parece ser momentâneo. Segundo alguns moradores do bairro Taquaril, este sentimento de identidade e mobilização coletiva se reduziu em expressividade no decorrer do tempo e na medida em que algumas reivindicações passaram a serem atendidas pelo poder Estatal. Mas, o que vez com que este coletivo viesse a se fragmentar/ segmentar e/ou perder expressividade de ação?

Percebesse neste instante, que a vida cotidiana do indivíduo não está desprovida de uma submissão aos demais poderes (sociais e naturais) para se conseguir satisfazer as suas necessidades humanas. Assim, o indivíduo não se constitui apenas como ser particular, mas também como ser genérico. O indivíduo não se constitui enquanto ser sem tomar partida da consciência de coletivo social á qual pertence. A respeito desta relação estabelecida entre a particularidade e a genericidade, HELLER (1992: 23) estabelece o seguinte comentário:

Os Choques entre particularidade e genericidade não costumam tornar-se conscientes na vida cotidiana; ambas submetem-se sucessivamente uma à outra do aludido modo, ou seja, “mudamente”. Mas isso não significa que a particularidade se submeta a uma comunidade natural; nesse ponto, manifesta-se uma diferença de princípio entre a moderna estrutura da vida cotidiana e a explicitação da estrutura que precedeu o nascimento da individualidade. Pois já não existem “comunidades naturais”. Com isso, aumentam as possibilidades que tem a particularidade de submeter a si o humano-genérico e de colocar as necessidades e interesses da integração social em questão a serviço dos afetos, dos desejos, do egoísmo do indivíduo.

Desta forma ficam evidenciados os processos que levam o indivíduo a conviver com este choque entre a particularidade e a genericidade. Em princípio, pode-se imaginar um exemplo onde o indivíduo seja acometido de forte desejo e/ou impulso por falar aquilo que mais lhe perturba no tratamento que recebe do patrão; contudo, a pessoa que passa pela função de funcionário simplesmente inibe os seus desejos e/ou impulsos a fim de não ser punido pelo patrão com uma demissão.

As normas que regem este relacionamento entre funcionário e patrão inibem que apenas os anseios particulares se manifestem, submetendo o indivíduo ao humano-genérico a fim de preservar a sua particularidade. Tais normas ou regras estão presentes em todas as relações de ordem social na qual a particularidade se manifesta. Dentro desta perspectiva, LEFEBVRE (1969: 30) realiza a seguinte afirmação:

(...) É na quotidianeidade organizada que o prazer foi transformado em satisfação, que a felicidade se reduz a um encadeamento de satisfações, que o desejo se tornou necessidade controlada, e que a insatisfação de uma determinada necessidade se opõe à satisfação. Os lazeres programados não saem do âmbito do quotidiano. Uma ruptura fictícia (imaginária-simbólica) entre o lazer e a quotidianeidade faz parte da disposição prévia dos lazeres e oculta a unidade do “sistema”. Ora, o que é a satisfação? A morte momentânea do desejo, estado eufórico que sucede o estado de insatisfação. O desejo só pode sobreviver aquém das satisfações e além das insatisfações, como doença, como espera. O mal-estar se prolonga sob o bem-estar, e a esperança sob o conforto.

Um casal de namorados, por exemplo, estabelece o seu próprio conjunto de normas a serem cumpridas por ambas as partes, para que a relação não sofra conflitos e/ou danos em sua estrutura á dois. Assim, a norma passa a fazer parte da individualidade na medida em que a mesma se torna importante para a manutenção do compromisso pessoal, da individualidade e do risco na decisão referente a uma alternativa dada.

Contudo, deve-se mencionar que o fato de existir uma norma que deve preferencialmente ser cumprida pelo indivíduo e pelo conjunto social não implica no seu total respeito e cumprimento, ou seja, o indivíduo possui a total liberdade de escolher ou decidir sobre o que deseja fazer acerca de uma determinada situação e, sobretudo, com suas conseqüências. Mas, o que faz uma pessoa romper a grade de normas e regras que estrutura a sua vida cotidiana? Segundo HELLER (ibidem: 25),“os conflitos extremos e puramente morais se produzem nos casos em que a motivação moral torna-se determinante e seu impulso, sua finalidade e seu objeto são entendidos como instrumento de elevação do humano-genérico.”

Um exemplo disto são as manifestações anarco-sindicalista, onde os funcionários são acometidos por um forte impulso particular-genérico para exigir dos patrões melhor condição de salário e de trabalho. Outro exemplo, desta manifestação de superação dialética parcial ou total da particularidade, foi dado por MARTINS [5] ao mencionar os linchamentos á transgressores das normas sociais, onde o coletivo comete um crime em nome da sociedade e de sua sobrevivência. Assim, o correto e verdadeiro parece corresponder às ansiedades da totalidade, da individualidade do homem e da situação social dada, que acaba por caracterizar o afeto fundamental do movimento no meio social.

Este sentimento de justiça no qual os linchadores realizam a sua ação está preenchido por uma ultrageneralização capaz de orientar e atuar na vida cotidiana através de um juízo provisório que está enraizado na particularidade. As pessoas que são incapazes de perceber e atuar sobre estes processos da estrutura cotidiana podem não conseguir... “(...) produzir um campo de liberdade individual de movimentos no interior da mimese, ou, em caso extremo, de deixar de lado completamente os costumes miméticos e configurar novas atitudes”.[6] Esta situação pode levar a alienação do indivíduo pelo cotidiano.

O que levaria o indivíduo a perder a sua consciência de existência frente à multidão? O ser se torna impessoal frente à influência do espetáculo que se oferece a ele. É o que BENJAMIM (ibidem) chamou de Badaud (basbaque) em seu texto sobre o Flâneur. Isto tornaria o indivíduo um ser capaz de submeter a sua vida ao cotidiano, sem ao menos perceber os processos históricos ao qual pertence diante da revolução urbana em que ora assiste, ora participa.

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* Fonte da imagem: Revista Veja on-line, link para acesso < http://veja.abril.com.br/galeria-de-imagens/pintura-de-rua/galeria.shtml >

[1] Geógrafo pela UFMG

[2] Filmes de produção Norte Americana. Dirigidos por Godfrey Reggio. (sd.).

[3] BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas III: Charles Baudelaire um Lírico no Auge do Capitalismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. (p.200).

[4] Professor adjunto do Instituto de Geociências da UFMG.

[5] MARTINS, José de Souza. A Sociabilidade do Homem Simples. Cotidiano e História na Modernidade anômala. São Paulo: Hucitec, 2000. (Coleção Ciências sociais, 43).

[6] HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 4a Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992. (p.36)

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 Referências Bibliográficas

 GUATTARI, Félix. Espaço e poder: A criação de território na cidade. N. º 16. Revista Espaço & Debate. São Paulo, 1985.

KURZ, Robert. O colapso da modernização. 5ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Tradução de Sérgio Martins. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

_______________.Posição: Contra os Tecnocratas. São Paulo: Editora Documentos, 1969.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. São Paulo: DIFEL, 1983.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

# 4 - O Irã de Mahmoud Ahmadinejad: apenas diferente ou contraventor?


Por Leonardo Luiz Silveira da Silva, 23/4/2009

O relativismo cultural é, nas ciências humanas, um tema de grande discussão e polêmica, sem deixar de ser importante. O desenvolvimento de um olhar a partir da posição de outro, é fundamental para que se evite julgamentos e análises distorcidas, como se os valores do observador fossem verdades absolutas e inquestionáveis. Na educação básica, percebemos que muitos livros da área de história e geografia estão carregados de argumentos que são baseadas em uma lógica ocidental de pensamento, ignorando completamente o olhar daqueles que não compartilham de tal lógica. Não é de se estranhar que tal fato fosse corriqueiro, pois vivemos em um tipo de sociedade alienadora, que nos leva não raramente a fazer este tipo de descuido. O nosso pensamento é edificado por princípios ocidentais, muito cristalizados pela nossa formação social. Contudo, o tipo de reflexão que leva em conta o relativismo cultural tem avançado. No senso comum ainda é incipiente. Na academia, acho improvável que alguém possa publicar hoje um texto com o tipo de argumento trazido pelo Lorde Cromer, administrador britânico no Egito colonial, citado por Edward Said[1]:

"O europeu é um bom raciocinador; suas afirmações factuais não possuem nenhuma ambigüidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica; é por natureza cético e requer provas antes de aceitar a verdade de qualquer proposição; sua inteligência treinada funciona como um mecanismo. A mente do oriental, por outro lado, como as suas ruas pitorescas, é eminentemente carente de simetria. Seu raciocínio é dos mais descuidados. Embora os antigos árabes tivessem adquirido num grau bem mais elevado a ciência da dialética, seus descendentes são singularmente deficientes na faculdade lógica. São muitas vezes incapazes de tirar as conclusões mais óbvias de quaisquer premissas simples, das quais talvez se admita a verdade. Procurem extrair uma simples declaração de fatos de qualquer egípcio comum. Sua explicação será geralmente longa e carente de lucidez. É muito provável que se contradiga meia dúzias de vezes antes de terminar a sua história. Ele com freqüência sucumbirá sob o processo mais ameno de acareação." (SAID, 2007, p.71)

Juan Ginés de Sepúlveda, em um outro exemplo, justificava a intervenção espanhola nas Américas, em trecho presente na obra de Wallerstein[2]:

"Os ameríndios são bárbaros, simplórios, iletrados e não instruídos, brutos, totalmente incapazes de aprender qualquer coisa que não seja a atividade mecânica, cheio de vícios cruéis e de tal tipo que se aconselha que sejam governados por outros(...)
(...) Os índios devem aceitar o jugo espanhol mesmo que não o queiram, como retificação e punição por seus crimes contra a lei divina e natural com os quais estão manchados, principalmente a idolatria e o costume ímpio do sacrifício humano.(...)
(...) impedir o mal e as grandes calamidades que os índios infligiram, e aqueles que ainda não estão sob o domínio espanhol continuam hoje a inflingir, a grande número de pessoas inocentes sacrificadas aos ídolos todos os anos." (WALLERSTEIN, 2007, p.33, 34)

Textos como estes soam como absurdo à maioria das pessoas. Carregado de imagens estereotipadas e preconceituosas, são alusões ao mito da superioridade européia frente aos demais povos. Traremos esta discussão para uma realidade o nosso tempo. Como se manifestaria hoje, de forma subliminar, o mito da superioridade cultural? Como estaria atuando o poder de uma cultura sobre as demais?

As instituições que representam os Estados, assim como o próprio modelo de Estado nação e o sistema político econômico dominante, são produções que foram afirmadas e reafirmadas pelo ideário europeu. Através do poder econômico e da imposição imperial, tais modelos chegaram aos outros continentes com força irresistível. Os Estados Unidos, que ajudaram a consolidar os modelos de pensamento europeu, tem executado um trabalho muito eficiente a favor da massificação cultural. Após o fim da URSS, os Estados Unidos trabalharam intensamente para consolidar o papel das instituições no mundo: FMI, ONU, OMC e outras. Estas instituições, financiadas pelos americanos e por outras potências ocidentais ou ocidentalizadas(Japão), defendem os valores dos seus financiadores como se fossem valores universais.

Em 1989, através da pressão do Fundo Monetário Internacional(FMI), países da América Latina foram forçados a reduzir os gastos públicos de forma drástica, para que pudessem continuar tendo facilidades de acesso ao crédito. Com isso, assistimos a desestruturação do que havia restado do Estado do bem-estar social ao sul do continente americano, ação que consolidava uma concepção de Estado que era oposta ao tipo de governo que já agonizava no leste europeu e na URSS e sacramentava sua inviabilidade.O Consenso de Washington é um episódio que mostra como os Estados Unidos podem utilizar as instituições para moldar o comportamento dos demais Estados.
O mais perturbador é que os países que vão de encontro com as regras das instituições, tidas como verdades universais, acabam construindo para si uma imagem de contraventor no sistema internacional de nações. Os Estados falidos e os Estados problema do sistema de nações acabam sendo taxados de contraventores por dois motivos. Ou pela sua incapacidade governamental de respeitar as regras internacionais, o que me parece ser o caso da Somália, ou pela sua opção de posicionar-se politicamente contrária a tais regras (pelo menos a parte delas). Os valores universais parecem não fazer bem a alguns tipos de regimes. Em contrapartida, alguns tipos de regime parecem não fazer bem aos valores universais, em um modelo moderno de desrespeito por parte das forças hegemônicas às minorias culturais. Seria o liberalismo e a democracia valores universais que devem ignorar entraves culturais em nome de um bem coletivo? Seriam os valores construídos na Europa essenciais e benéficos a todo e qualquer gueto?

No dia 20 de Abril, o presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad abriu a conferência da ONU sobre o racismo e quebrou o protocolo. Tinha inicialmente 7 minutos para falar e discursou durante 32 minutos em uma retórica repleta de ataques ao governo de Israel no Oriente Médio. Leia o trecho que contém parte de suas declarações[3]:

“O Ocidente estabeleceu um governo racista no Oriente Médio. Israel é o regime mais cruel e repressivo. O sionismo personifica o racismo que usa falsamente a religião para esconder ódio(...)
(...)Israel foi criado sob o pretexto do sofrimento dos judeus e da ambígua e duvidosa questão do Holocausto. Eles enviaram imigrantes da Europa, dos EUA e de outras partes do mundo para estabelecer um governo totalmente racista na Palestina ocupada.”

Durante a fala de Ahmadinejad, cerca de 30 delegados europeus deixaram a sala como forma de protesto e diversos manifestantes vestiram nariz de palhaço, chegando ao ponto de tentar acertar um dos objetos no presidente iraniano. Além do protesto dos delegados europeus, alguns países não enviaram delegados. Ahmadinejad aproveitou o momento para criticar a situação[4]:

"O boicote é uma prova clara de que apoiam o racismo. Esta é a liberdade de expressão e os defensores desta liberdade têm agora medo de participar. Isso é arrogância."

O comportamento de Ahmadinejad foi duramente criticado por boa parte dos órgãos de imprensa. O exercício de relativismo cultural propõe pensarmos a partir da posição do outro antes de julgá-los a partir dos nossos próprios princípios. O Irã de Ahmadinejad é contraventor ou simplesmente diferente da ordem proposta pelas forças hegemônicas? Fica o questionamento aos leitores, que terão a chance de ler este trecho de uma entrevista do presidente Iraniano à revista alemã Der Spiegel[5]:

Der Spiegel: A crise dos reféns de 444 dias, durante a qual 50 cidadãos americanos foram detidos no final de 1979 até o começo de 1981 na embaixada americana em Teerã, ainda hoje é um trauma coletivo americano.
Ahmadinejad: Mas pense nas coisas que foram feitas aos iranianos! Nós fomos atacados pelo Iraque. Foram oito anos de guerra. Os Estados Unidos e alguns países europeus apoiavam essa agressão. Nós fomos atacados até mesmo com armas químicas e o seu país, entre outros, ajudou e encorajou esses ataques. Nós não cometemos uma injustiça com ninguém. Não queríamos atacar ninguém, nem ocupamos outros países. Não temos presença militar na Europa ou nos EUA. Mas as tropas da Europa e dos EUA estão estacionadas ao longo de nossas fronteiras.”

PS: A entrevista na íntegra de Ahmadinejad à Der Spiegel pode ser lida nos links citados abaixo(três partes):
Citações

[1] SAID, Edward. O Orientalismo: O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Companhia das letras, 2007.
[2] WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo, boitempo, 2007.
[3] http://www.jewishblogging.com/blog.php?bid=189115
[4] http://www.jewishblogging.com/blog.php?bid=189115
[5]http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2009/04/12/ult2682u1133.jhtm

segunda-feira, 20 de abril de 2009

* 2 - Um convite à reflexão sobre os muros visíveis e invisíveis da Escola

Por José Álvaro Pereira da Silva
A matéria do professor Leonardo Antônio intitulada “A Educação na pós-modernidade: vestígios de muros que separam dois mundos”, publicada neste Blog no dia 17 de abril, se apresentou, para mim, como um estímulo para construir mais dúvidas acerca da Escola e dos seus muros. Falo de dúvidas porque acredito que a melhor lógica para o trato com o conhecimento não são as certezas e sim as dúvidas. Ao ler a referida matéria me vieram à mente as imagens do excelente filme “Entre os Muros da Escola”1, do diretor Laurent Cantet, em que é mostrada uma escola da periferia de Paris onde estudam filhas e filhos de imigrantes, rejeitados por uma sociedade que tem medo de conviver com as diferenças, principalmente uma diferença como essa expressa pela condição migrante. Sugiro que todos os educadores e outros profissionais que trabalham com educação assistam este filme!

No filme, François (François Bégaudeau) e seus colegas professores preparam o novo ano letivo em uma escola da periferia parisiense. Munidos das melhores intenções preparam suas aulas, sem se lembrar de que os sentidos de por quê estudar não são os mesmos que estão na cabeça dos alunos. Esquecem-se de que esses sentidos não são dados a priori, mas precisam ser reconstruídos cotidianamente, o que exige, muitas vezes, que a escola quebre os muros que a separam da vida real e dialogue com os estudantes sobre os motivos que os trazem à escola e que, quase sempre, impedem que de fato estudem. Que sentido esses adolescentes e jovens atribuem ao ato de estudar?

Vemos um grande distanciamento entre o que a Escola propõe e aquilo que os estudantes realmente necessitam. No referido filme vimos que a lógica do aprender e do ensinar é incompatível com a lógica da sobrevivência a qualquer custo, a que os migrantes muitas vezes estão submetidos.

Os estudantes, experimentados na lógica da competição em que apenas uns poucos são premiados, sabem muito bem que muitas das promessas tradicionalmente atribuídas à escola, enfim aos portadores de um diploma, não serão cumpridas. Por vivenciarem esse contexto em outras esferas de sua vida, é que os alunos não aceitam nem as falsas promessas nem o discurso de autoridade dos professores. Por isto é preciso que o sentido da Escola seja reinventado pelos sujeitos que dela fazem parte.

Não podemos continuar reproduzindo uma concepção de escola em que o conhecimento é visto do ponto de vista instrumental, como meio e não como fim. Precisamos continuamente nos perguntar pelos fins do conhecimento, senão ele servirá a qualquer fim. Se isto acontecer, ou seja, se considerarmos que o fim da educação já está dado e que não é preciso reconstruí-lo, hoje, à luz das expectativas dos sujeitos que chegam à escola, estaremos naturalizando a concepção de que a função da escola é, por exemplo, preparar para o vestibular, ou mesmo preparar para o mercado de trabalho, e treinaremos esses sujeitos para uma competição desumana contra os demais.

Esse caráter utilitarista que cada vez mais prevalece na escola reforça, a meu ver, os muros que ela erige à sua volta, na medida em que direciona os sujeitos para a competição com os demais, em busca do sucesso individual. Assim é que caminhamos em direção à barbárie, exemplos da qual podem ser vistos diariamente nas páginas dos jornais, expressos no número assustador de jovens assassinados nas periferias dos grandes centros urbanos, de pais ou responsáveis que não cuidam de seus filhos ou mesmo que os violentam, ou dos crimes mais inimagináveis de que temos ouvido falar ultimamente, desde aquela primeira notícia, que tanto nos impressionou, sobre o índio queimado em Brasília, sem falar no inverso de tudo isto, que é a criminalização de militantes que se envolvem na luta contra o latifúndio, ou na demissão de centenas de funcionários de grandes empresas dos EUA que continuam sendo demitidos, apesar dos mais de 13 bilhões de dólares recebidos de empréstimos às custas dos cofres públicos.

Podemos reconhecer tais situações em nossa sociedade como exemplos de ocorrência de barbárie, o que indica que a sociedade tem responsabilidade sobre esse estado de coisas. Caso contrário devemos inverter a lógica da explicação e responsabilizar as vítimas da exclusão como as responsáveis pela sua própria exclusão, como, aliás, vemos acontecer tantas vezes, na mídia.

Se quiser romper com esses muros, cabe à Escola pensar em uma educação para a emancipação2, isto é, uma educação cujos objetivos não sejam reduzidos à lógica instrumental. É preciso que a freqüência à Escola seja entendida como um importante momento da vida das pessoas, que deve ser vivido de maneira agradável, enfim deve fazê-las mais felizes. O geógrafo Milton Santos nos ajuda a pensar sobre os objetivos da educação quando nos diz que

"A educação não tem como objeto real armar o cidadão para uma guerra, a da competição com os demais. Sua finalidade, cada vez menos buscada e menos atingida, é a de formar gente capaz de se situar corretamente no mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade humana como um todo. A educação feita mercadoria reproduz e amplia as desigualdades, sem extirpar as mazelas da ignorância. Educação apenas para a produção setorial, educação apenas profissional, educação apenas consumista, cria, afinal, gente deseducada para a vida.”3

A existência dos muros materiais ou imateriais que cercam a escola não é algo natural, mas histórico, que serve para inculcar valores nos estudantes que ajudam a manter as bases de uma sociedade identificada com o modo de produção capitalista, isto é, que transforma o sujeito em mercadoria e faz prevalecer o processo social de dominação. Por isto devemos estranhá-los e ajudar os educandos a construírem os questionamentos e indagações que se fazem necessários para sua superação. Precisamos acreditar que os objetivos da escola podem ser outros e que a formação de um ser humano ético e solidário, que acredita na humanidade, é um excelente objetivo para a escola.

Se a nossa opção é por uma escola sem muros, precisamos superar a alienação contemporânea, que nos faz aceitar esse estado de coisas que permite tanta barbárie como sendo natural e construir um caminho democrático para a formação de sujeitos autônomos, críticos, capazes de compreender sua realidade e de nela se inserirem.

Uma escola sem muros certamente poderá nos ajudar a construir uma sociedade mais humana, em que a violência não se reproduza de forma generalizada através do discurso neoliberal que produz o individualismo exacerbado e uma competição mortal pelo sucesso.
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Referências Bibliográficas:

* Fonte da imagem: HARPER, Babette et. alii. CUIDADO, ESCOLA. São Paulo: Livraria Brasiliense Editora S.A. 1980. p. 42.

1. Entre os Muros da Escola. Direção: Laurent Cantet. França, 2009. 128 min.
2. ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. Trad. Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
3. SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 5ª ed. São Paulo: Nobel, 1998. p 126.

Carisma: uma forma (individual) de poder


Danilo Arnaldo Briskievicz[1]

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ganhou um elogio do presidente dos EUA, Barack Obama, no dia 2 de abril. Ao encontrar o presidente brasileiro durante almoço que fez parte da reunião de líderes do G20 (grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento), em Londres, na Inglaterra, Obama afirmou que Lula “é o cara” e que o presidente brasileiro é o “político mais popular do mundo”.

Em tempos de frases apaixonadas de Barack Obama dirigidas ao presidente Lula proponho uma reflexão acerca do vigor ou se quiserem do carisma a partir dos conceitos da pensadora Hannah Arendt. O carisma/vigor é uma propriedade do indivíduo e que se confunde com sua imagem e com sua biografia. Lula e Obama tem, e muito, vigor de sobra! Nossa provocação é no sentido distinguir o que, em política, representam fenômenos tão diversos e que aparecem tão coligados como vigor e poder, força e violência, poder e autoridade e violência e poder. Será que Lula e Obama tem poder ou apenas carisma? Será o poder a capacidade da res publica ou apenas de um indivíduo?

Hannah Arendt nos auxilia na distinção entre vigor e poder. E não só: entre poder, força, autoridade e violência. A distinção entre os termos poder, vigor, força, autoridade e violência é uma maneira de Arendt emancipar um termo do outro, a fim de não igualar, como se fossem sinônimos, vocábulos de diversos matizes, com significados construídos a partir de “fenômenos distintos e diferentes.” A preocupação pela depuração lingüística é importante uma vez que “por detrás da aparente confusão subjaz a firme convicção à luz da qual todas as distinções seriam, no melhor dos casos, de pouca importância: a convicção de que o tema político mais crucial é, e sempre foi, a questão sobre “quem domina quem”. Assim, esclarece Arendt, “poder, vigor, força, autoridade e violência seriam simples palavras para indicar os meios em função dos quais o homem domina o homem; são tomados por sinônimos porque têm a mesma função.” Distinguir os termos é liberar cada um deles de seu registro e vinculação tradicionais, uma vez que “somente quando os assuntos públicos deixam de ser reduzidos à questão do domínio é que as informações originais no âmbito dos assuntos humanos aparecem, ou, antes, reaparecem, em sua autêntica diversidade[2]”. A compreensão de cada termo em sua especificidade desvenda a tradição e renova o significado político de cada um.

O vigor é a resistência ou energia inerente a um objeto ou pessoa. O vigor se encontra no mundo em objetos ou indivíduos no singular. É parte integrante e inerente de coisas e pessoas e é experimentado em contato com outros, guardando sempre sua propriedade. A singularidade do vigor é a sua independência. Lula e Obama tem, juntos, os maiores índices de popularidade (opinião pública) do planeta.

A força não é nada mais que a liberação de energia conseguida através dos movimentos físicos ou da sociedade. O movimento totalitário é um movimento que necessitava de força bruta para manter sua mobilidade. Para Arendt, “embora a eficácia da violência não dependa de números é, contudo na violência coletiva que vem à tona o seu caráter mais perigosamente atrativo, e isto de modo algum por que haja segurança em números.” Assim, “em todos os empreendimentos ilegais, criminosos ou políticos, o grupo, pelo bem de sua própria segurança, exigirá “que cada indivíduo cometa uma ação irrevogável”, a fim de destruir as suas pontes de ligação com a sociedade respeitável, antes que seja admitido na comunidade da violência”(SV:50).

A autoridade fundamenta-se no respeito à pessoa ou à instituição. A autoridade para obter sua manutenção não necessita de coerção nem de persuasão. O desprezo marca a decadência da autoridade. O argumento de Arendt é que autoridade desapareceu do mundo moderno, criando uma “crise constante da autoridade”, e diante da crise a sua confusão com a violência é notória, “visto que autoridade sempre exige obediência ela é comumente confundida com alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou.(...) se a autoridade deve ser definida de alguma forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força como à persuasão através de argumentos.” Nessa confusão, percebe-se claramente que “nosso conceito de autoridade é de origem platônica,” uma vez que um “mesmo argumento é frequentemente utilizado com respeito à autoridade: se a violência preenche a mesma função que a autoridade – a saber, faz com que as pessoas obedeçam–, então violência é autoridade[3]

A violência é um instrumento. Aproxima-se do vigor no sentido de que os instrumentos pretendem multiplicar a energia do objeto – no caso da bomba atômica ou do indivíduo – no caso de uma arma de fogo. Para Arendt, “jamais existiu um governo exclusivamente baseado nos meios de violência. Mesmo o domínio totalitário, cujo principal instrumento de dominação é a tortura, precisa de uma base de poder – a polícia secreta e sua rede de informantes.” Ou seja, “homens sozinhos, sem outros para apoiá-los, nunca tiveram poder suficiente para usar da violência com sucesso”(SV:41). Enfatiza Arendt que a violência torna o poder impotente. Por isso, “do cano de uma arma emerge o comando mais efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí é o poder”(SV:42). Diferentemente da tradição que equaciona poder e violência, para Arendt, quando a violência é total o poder está se deteriorando. Na política, “substituir o poder pela violência pode trazer a vitória, mas o preço é muito alto; pois ele é não apenas pago pelo vencido como também pelo vencedor, em termos de seu próprio poder”(SV:42).

O poder não se enquadra, para Arendt, dentro do binômio mando-obediência. Pelo contrário, o poder é cooperativo, permite a pluralidade de opiniões, uma vez que “corresponde à habilidade humana não apenas para agir, mas para agir em concerto.” O poder não é como o vigor, pois não pertence a um indivíduo, mas tem um caráter coletivo, “pertence a um grupo e permanece em existência apenas na medida em que o grupo conserva-se unido”(SV:36), resumido na expressão política latina potestas in populo – sem um povo ou grupo não há poder. Por conseqüência, “em todas as repúblicas com governos representativos, o poder emana do povo. Isto significa que o povo dá poderes a certos indivíduos para representá-lo, para agir em seu nome. Quando falamos em perda de poder, significa que o povo retirou seu consentimento àquilo que seus representantes, os funcionários eleitos autorizados, fazem[4].” Com isso, o poder é politicamente flexível, mutável, finito e depende da ação humana livre para manter-se. Para Arendt, “o poder é de fato a essência de todo governo, mas não a violência. A violência é por natureza instrumental; como todos os meios, ela sempre depende da orientação e da justificação pelo fim que almeja. E aquilo que necessita de justificação por outra coisa não pode ser essência de nada. O poder é “um fim em si mesmo”. E, posto que o governo é essencialmente poder organizado e institucionalizado, [é] para possibilitar que os homens vivam em comum” (SV:41).

A convivência política e o poder que emana desse estar juntos necessita de legitimidade. Segundo Arendt, “o poder emerge onde quer que as pessoas se unam e ajam em concerto, mas sua legitimidade deriva mais do estar junto inicial do que de qualquer ação que então possa seguir-se.” Assim, “a legitimidade, quando desafiada, ampara-se a si mesma em um apelo ao passado, enquanto a justificação remete a um fim que jaz no futuro. A violência pode ser justificável, mas nunca será legítima. Sua justificação perde em plausibilidade quanto mais o fim almejado distancia-se no futuro” (SV:41).

Portanto, para Arendt, poder não é uma ação individual, mas uma capacidade popular de agir em função de um objetivo comum. O que Lula e Obama apresentam é um grande vigor. Será que a res publica tem, ainda, esse mesmo vigor na América do Norte e no Brasil? Como o povo, de fato, vivencia esse poder? O povo é o cara!, diria Hannah Arendt...

[1] Mestre em Filosofia Social e Política pela UFMG. Site: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/doserro
[2] ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p.36. Doravante apenas SV seguido da página.
[3] Idem. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000 (5ª ed.), p. 127, 128, 129, 140.
[4] Idem. Da violência. In:Crises da república. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 193.