sábado, 25 de abril de 2009

Maquiavel, sociedade civil e Estado


Danilo Arnaldo Briskievicz

Sociedade: Nicolau Maquiavel estuda a sociedade pela "análise efetiva dos fatos humanos[1]". Não se prende em especulações teológicas ou metafísicas. Seu conceito de sociedade pressupõe uma definição da psicologia humana e outra da história. A sociedade é constituída por homens de natureza ambígua, contraditória. Querem não ser dominados enquanto o Estado os pretende dominar. Para Maquiavel, os homens não são, como se pensava até então, devotados essencialmente ao bem: "Maquiavel conclui, por meio do estudo dos antigos e da intimidade com os potentados da época, que os homens são todos egoístas e ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os desejos e as paixões seriam os mesmos em todas a s cidades e em todos os povos[2]".

Maquiavel define a história como constituída por ciclos incessantes. Os fatos históricos repetem-se aparentemente diferentes, mas essencialmente iguais. Como os fatos são eternamente recorrentes, conhecer a dinâmica deles e sua recorrência é importante para o estudo do presente. Importante, claro, para conhecer e atuar na sociedade de maneira eficaz. A sociedade é constituída por homens concretos e históricos, que precisam de um governo centralizado e forte para moldar a natural maldade humana, impedindo que seja desagregadora social. Isso significa que o príncipe, conhecedor da psicologia humana e da história que se desenvolve em ciclos recorrentes, é a personagem que deve ordenar a sociedade: "não existiria, contudo, uma ordem ideal, com validade absoluta, independente da organização social concreta dos povos. O povo é, para Maquiavel, uma matéria que aguarda sua forma e a engenharia da ordem parte da análise da situação social, não resultando do arbítrio do fundador de Estados, mas de sua capacidade para captar, num momento de gênio, aquela forma desejável e de sua disposição para impô-la sem vacilação[3]".

Quem poderá impor a ordem à sociedade? O Estado. E quem controla o Estado e sujeita a sociedade às suas leis e ordens? O príncipe. Assim, concluímos que a sociedade de que fala Maquiavel é constituída por homens que podem se apresentar como maus, traidores, malignos. Mas esses mesmos homens devotados ao mal encontram-se numa necessidade de organização social que seja para eles um respeito à sua liberdade e não apenas o controle fútil da cidadania. Essa mesma sociedade se forma historicamente em ciclos que se repetem, são recorrentes. Essa sociedade – mundana, concreta, disforme, maligna deve ser domada pelo príncipe. Ou o príncipe materializa a forma e a engenharia da ordem social ou não poderá manter seu poder e ampliá-lo: "para Maquiavel, o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo estado[4]".

O Estado: o Estado, sua formação, sua fundação e sua manutenção são temas recorrentes no texto de O Príncipe. Maquiavel afirma “que deseja escrever coisa que preste, útil; por isso não tratará do Estado como deve ser mas como é; nada melhor, para que o governante planeje bem suas ações. A ação deliberada, planejada, eficaz se dá no plano do que ele chama de virtù e que nada tem a ver com a virtude, no sentido cristão ou moral. Mas ninguém realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de nossas ações, diz, se deve à virtù, metade à fortuna[5].” Partindo da observação da Itália do Renascimento, época de Maquiavel, podemos fazer algumas anotações sobre seu modo de caracterizar o Estado. Na Itália de sua época, reinava uma enorme confusão: "a tirania impera em pequenos principados, governados despoticamente por casas reinantes sem tradição dinástica ou de direitos contestáveis. A ilegitimidade do poder gera situações de crise e instabilidade permanen­te. Somente o cálculo político, a astúcia, a ação rápida e fulminante contra os adversários são capazes de man­ter o príncipe. Esmagar ou reduzir à impotência a oposição interna, atemorizar os súditos para evitar a subversão e realizar alianças com outros principados constituem o eixo da administração. Como o poder se funda exclusivamente em atos de força, é previsível e natural que pela força seja deslocado, deste para aquele senhor. Nem a religião, nem a tradição, nem a vontade popular legitimam o soberano e ele tem de contar exclusivamente com sua energia criadora. A ausência de um Estado central e a extrema multipolarização do poder criam um vazio, que as mais fortes individuali­dades capacitam-se a ocupar[6]."

O Estado, para impedir a multipolarização do poder, devido à ação dos condottieri – especialistas na técnica militar, mercenários da segurança nacional, necessitava ser centralizado, comandando pela mão-de-ferro de um soberano – o príncipe. O príncipe por suas vez, deveria estar aparelhado de uma guarda nacional fiel, dócil e obediente, para manter a ordem interna do Estado e lutar por novos domínios e pela manutenção do seu território (soberania). Por isso, "face à Itália da sua época – dividida, corrompida, sujeita às invasões externas – Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário a sua unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam imprescindível o surgimento de um homem virtuoso capaz de fundar um Estado. Era preciso, enfim, um príncipe[7]." O Estado para Maquiavel é a organização da relação de forças entre o comando e a obediência. O Estado precisa usar da coerção para se manter poderoso em relação aos conflitos internos e externos. Uma Itália armada para coibir a desordem interna e conquistar novos domínios era necessária. Assim, Maquiavel funda uma nova visão política de Estado: "desde a primeira frase do príncipe, o termo Estado, sem ser definido de modo rigoroso, designa uma configuração política que implica a organização da relação de forças entre o comando e a obediência: ele caracteriza, na sua "verdade efetiva", o "novo principado" que Maquiavel sonda[8]". O Estado para Maquiavel tem uma função reguladora. Uma nação deve ser regulada pelo Estado: "para Maquiavel, o essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo Estado. Em função do modo pelo qual os bens são compartilhados, as sociedades concretas as­sumem diferentes formas. Assim, onde persista ou pos­sa persistir uma relativa igualdade entre os cidadãos, o fundador de Estados deve estabelecer uma república. Ocorrendo o contrário, manda a prudência que seja constituído um principado. Se não proceder assim, o governante formará um Estado desequilibrado e sem harmonia, que não poderá subsistir por muito tempo[9]".

Qual o fundamento do Estado para Maquiavel? A ordem. Essa mesma ordem, em vista de uma Itália em profunda confusão política externa e interna, seria o objetivo maior de Estado regulador e centralizador, apesar de não ser previamente prevista: “o núcleo da organização do Estado residiria na ordem, que pode manifestar-se sob várias formas, mas que se apresentaria basicamente como principados ou como repúblicas. As repúblicas apresentariam três modalidades: a aristocrática, como Esparta, em que uma maioria de governados encontrava-se subordinada a uma minoria de governantes; a democracia restrita, na qual se dá o contrário, como ocorreu em Atenas; e a democracia ampla, quando a coletividade se autogo­verna, fenômeno encontrado em Roma após a insti­tuição dos tribunos da plebe e a admissão do povo à magistratura. Não existiria, contudo, uma ordem ideal, com va­lidade absoluta, independente da organização social concreta dos povos[10]". Na busca da ordem, de um estado articulado na possibilidade do uso da força, quem estaria autorizado a exercer a função de governante, a função de chefe-de-Estado? Quem seria este fundador de Estados? O príncipe virtuoso e afortunado: "o fundador de Estados não é, para Maquiavel, um homem qualquer, mas uma personalidade fora do co­mum, dotada de uma ética superior, que lhe faculta o uso de meios extraordinários para a organização de remos ou repúblicas[11]." Por isso, conclui-se que o homem de Estado de Maquiavel, a partir da leitura do Capítulo XVIII de O Príncipe é aquele que realiza "grandes coisas": o "que conta na conduta do homem de Estado é o fim, a "grande coisa", e a realização do fim torna lícitas ações, tais como não observar os pactos estabelecidos, condenadas pelo código moral, ao qual devem obedecer os comuns mortais[12]".

[1] MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo:Nova Cultural, 1999, p.16. Danilo A. Briskievicz é mestre em Filosofia Social e Política pela UFMG.
[2] Ibid., 17.
[3] Ibid., 21.
[4] Ibid., 20.
[5] RIBEIRO, Renato Janine. Maquiavel. Disponível em http://www.renatojanine.pro.br
[6] MAQUIAVEL. Op. Cit., p. 6-7.
[7] WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os clássicos da Política 1. São Paulo: Ática, 2000, p. 21.
[8] GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 19.
[9] MAQUIAVEL. Op. Cit., p.20.
[10] Ibid., p.20-21.
[11] Loc. Cit.
[12] BOBBIO, Norberto. Teoria geral da Política. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.194.

11 comentários:

  1. Muito bom! Sou acadêmica do 1º Período do curso de Direito, e este texto vai me ajudar muito na prova de Ciência Política e Teoria geral do estado. Obrigada. :)

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  2. Achei a linguagem didática e muito esclarecedora, contribuiu grandemente para entendimento do livro "O príncipe" d Maquiável.

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  3. aff' odiei, tem muita coisa pra mim ler, nam !

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  4. Muito bom!!! Mostra a ideia de Maquiavel em relação ao estado e sociedade de forma clara e objetiva. Parabens.

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  5. Texto muito bem elaborado. Sintetiza claramente pontos principais do pensamento de Maquiavel. Parabéns.

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