quarta-feira, 15 de abril de 2009

# 3 - O (Ex-tado) somali e os piratas do Índico


Por Leonardo Luiz Silveira da Silva, 15/4/2009

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O caos em que se encontra o Estado Somali começa a incomodar, e muito, a ordem internacional. Desde 1991, ano do golpe de Estado que depôs Mohamed Siad Barre, a Somália permanece na incerteza. Nem a intervenção internacional feita e aprovada pela ONU[1] no período de 1992-1994, foi suficiente para manter a ordem do país. Territórios autônomos surgiram da fraqueza do Estado Somali: a saber, a Somalilândia, que tem como capital a cidade de Hargeysa, maior cidade do norte do Estado Somali e a Puntlândia, que tem como capital Boosaaso. A Somalilândia, localizada junto à fronteira da Eritréia, declarou-se independente da Somália e é clara a sua intenção de formar um Estado-Nação. A Puntlândia declarou-se autônoma em 1998 e aparentemente seus líderes desejam a formação de uma federação na Somália. O território da Puntlândia é de onde estão surgindo boa parte dos piratas do Índico. Localizada estrategicamente no chifre da África, está em uma região de passagem de navios que saem do Golfo Pérsico rumo ao Mar Vermelho. Estes navios, que levam todo tipo de mercadoria e também petróleo, cumprem uma importante rota comercial entre o Golfo Pérsico e o sul da Europa, passando pelo canal de Suez.
O frágil governo somali tenta ainda se legitimar e não consegue sequer estabelecer a ordem nas áreas próximas a Mogadíscio. Garantir a segurança da plataforma continental somali e dos mares próximos não parece estar no conjunto das prioridades do (des)governo. A lacuna de poder do Estado Somali, causado pelos anos de guerra civil e intervenções internacionais (primeiro da ONU e recentemente da Etiópia) transformaram o país em um ambiente propício para todo o tipo de atividade criminosa, categoria ao qual a pirataria é incluída. Curiosamente, justamente este efeito colateral da fragmentação territorial do Estado somali é o que motiva a preocupação das potências ao redor do mundo. A Guerra Civil, por si só, após a malfadada intervenção da ONU na década de 90, parecia não ser capaz de fazer com que a Somália retornasse às manchetes dos jornais. Os piratas que vem fazendo do Golfo de Áden um verdadeiro “mar do crime” fizeram novamente a Somália retornar aos noticiários. Reações mais duras contra a pirataria vêm acontecendo, inclusive causando mortes entre piratas e reféns. Francis Fukuyama no seu livro “A construção dos Estados[2]” alertava que a presença de Estados falidos no ambiente internacional, categoria em que a Somália pode se enquadrar, a medida que a falência não significa necessariamente o comprometimento econômico e sim a incapacidade de governar, de fazer valer o poder no seu espaço(território), seria a principal ameaça a integridade de outros Estados amplamente legítimos e livre de contestações. Segundo o autor,

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“A governança fraca solapa o princípio da soberania, sobre o qual foi construída a ordem internacional posterior ao Tratado de Westfália, porque os problemas que os Estados fracos geram para si mesmos e para outros Estados aumentam e muito a probabilidade de que outro membro do sistema internacional decida unilateralmente intervir em seus negócios para resolver o problema pela força.” (2005, p.128)
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Como a experiência da intervenção estrangeira mostrou-se traumática para os que tiveram a disposição de realizar uma intervenção, os piratas devem ter que fazer muito mais barulho na costa somali para motivarem um novo interventor. Eric Hobsbawn em “Globalização, democracia e terrorismo[3]” aborda justamente a relação entre o mundo construído político e economicamente após o fim da URSS e o surgimento dos Estados falidos:

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“Com efeito, durante alguns anos, depois do fim da URSS, mesmo o seu principal Estados sucessor, a Federação Russa, parecia prestes a somar-se ao grupo dos Estados Falidos(...)
(...) grandes áreas do planeta permanecem instáveis, tanto interna quanto internacionalmente. Essa instabilidade é dramaticamente acentuada pelo declínio do monopólio da força armada, que já não está nas mãos dos governos. A Guerra Fria deixou em todo mundo um enorme suprimento de armas pequenas, mas muito potentes, e outros instrumentos de destruição para usos não-governamentais, que podem ser facilmente adquiridos com os recursos financeiros disponíveis no gigantesco e incontrolável setor paralegal da economia capitalista global, em fantástica expansão”. (2007, p. 87)

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A oposição de poderes não governamentais e estatais constroem aquilo que alguns já começam a chamar de guerra assimétrica. Os atentados de 11 de Setembro seriam mais um capítulo de uma batalha desta natureza. A assimetria se dá justamente pelo descompasso entre uma força Estatal, com alvos definidos e uma força não-Estatal, com alvos não definidos claramente. No caso Somali, a força não-Estatal esfacelou o Estado. Em uma situação deste tipo, o embate assimétrico não fica devidamente claro, pois não se sabe quem mais pode ser considerado como governo. Também há que se diferenciar os objetivos de quem utiliza da violência como instrumento político. Existem aqueles que querem contestar uma certa ordem posta, sem que com isso se coloque no poder e existem aqueles que querem tomar o controle dos recursos do Estado, que é o que assistimos na Somália.
Como foi dito anteriormente, um Estado Falido torna-se um ambiente propício ao surgimento de todo o tipo de atividade criminosa. Com a soberania solapada(parafraseando Fukuyama), não existe ou quase não existe controle social por parte do Estado. Impera a anomia. Não há constituição válida, impostos recolhidos, polícia atuante, o que possibilita a multiplicação de verdadeiras redes criminosas, que ganham corpo à medida que têm sucesso em suas atividades. Com mais dinheiro em caixa, essas redes podem ousar mais. O limite de sua ousadia é justamente quando deixa de ser um problema somente de um Estado e passa a ser um problema internacional(como parece ser o caso somali). A ameaça à ordem internacional(feita no ataque e sequestro de barcos e tripulações estrangeiras) é um erro capital que os piratas estão cometendo. É um convite a uma nova intervenção, a instauração de um governo na Somália através do apoio internacional, que faça valer do seu poder fiscalizador para conter as atividades criminosas. A base dos piratas está na terra. Se a ordem chegar à terra, os piratas ficarão sem rumo no mar. Uma reorganização do Estado Somali significa um duro golpe à pirataria. Todos sabem a receita. Basta os piratas continuarem testando a paciência das poderosas forças que são interessadas na manutenção da ordem internacional. Segundo o cálculo racional, se as atividades criminosas no chifre da África atingirem um custo maior do que uma intervenção, estará dada a situação em que a intervenção passa a ser uma séria possibilidade.

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Citações

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[1] A cronologia dos acontecimentos na Somália pode ser acompanhada em http://www.pbs.org/wgbh/pages/frontline/shows/ambush/etc/cron.html
[2] Fukuyama, Francis. A construção de Estados. Rio de Janeiro, Rocco, 2005.
[3] Hobsbawn, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo, Companhia das letras, 2007.

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2 comentários:

  1. Ei Leonardo,
    Parabéns pela matéria. O seu texto me ajuda a organizar o pensamento em relação às diferentes matérias veiculadas nos meios de comunicação sobre os piratas da Somália. É na verdade um cinvite à reflexão sobre os difíceis caminhos que a Somália terá que percorrer para construir um Estado democrático de direito. Sua análise lança luz sobre os limites da intervenção da ONU na Somália e desvela-nos algumas condições necessárias para que esse país trilhe o caminho democrático.

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  2. Parabéns pela coluna.

    Você podia fazer uma sobre a Divisão das civilações do Samul Huntington que você mostrou na aula>

    Vitor Alves
    9ª3

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