sábado, 4 de abril de 2009

(Di)lemas da modernidade


Por Danilo Arnaldo Briskievicz[1]
A modernidade é um dilema. Nunca, em qualquer outra época da humanidade, revoluções, rebeliões, golpes de Estado, guerras – da conhecida ultima ratio nos negócios diplomáticos até as milicianas -, trouxeram à tona sentimentos tão diversos. Sugiro uma rápida passagem pelos (di)lemas da modernidade para entender o fogo fátuo de alguns fenômenos políticos.
Um lema é o resumo das motivações de um grupo para se unir, agir e justificar sua organização em dado momento, sempre muito breve. O lema é um grito de guerra (nada mais apropriado à modernidade!) da sociedade civil. Expressão de indignação. Expressão de ódio. Expressão da necessidade de mudança. Mas será que os lemas não se tornaram, com o tempo, um dilema para quem os gritou na empolgação da coletividade desvairada?
A modernidade é dilemática porque é centrada no conceito de liberdade, seja ela o que for – saída de um cano de uma arma, explodida numa bomba atômica, detonada no corpo de um homem ou mulher a procura de salvação, seja na res publica mutualmente unida. A liberdade de ação é um dos (di)lemas da modernidade. Para Ansart, a modernidade trouxe “a subordinação e a funcionalização da atividade política à atividade econômica, a submissão da liberdade à necessidade vital, a substituição da fabricação pelo trabalho, da durabilidade pelo consumo e da ação e do discurso pelos imperativos do comportamento previsível e da violência[2]”. Modernidade: nas suas trevas e luzes, os lemas soam hoje como memória de uma visão de mundo plena de boas intenções (das quais, dizem as boas línguas, o inferno está cheio).

Liberté, Egalité, Fraternité! Aos gritos do famoso mote o Terceiro Estado destronou a monarquia. A Revolução Francesa colocou a burguesia no lugar para onde suas inclinações mais ambiciosas a puderam levar e de lá nunca mais se retirar. A burguesia, em 1789 era o povo, com o povo e pelo povo. Mas com sede de poder, de acúmulo de riquezas cujo grande empecilho era o próprio governo monárquico ou o Estado com seus impostos e regulação legítima, o Ancien Régime, esqueceu-se alguns dias depois do seu lema popular e revolucionário. O lema tornou-se contraditório como símbolo uma vez que a Revolução e seus nobres ideais deram lugar à opressão política e do terror de Robespierre. Ele se fez porta-voz do liberalismo francês em sua face mais clara – violência e poder confundidos como sempre na modernidade!- em que milhares de pessoas foram mortas. O Estado petrificou-se e passou a mostrar sua face mais obscura. Pessoas foram detidas, julgadas sumariamente e guilhotinadas. O lema foi banido do discurso já que os direitos individuais foram suspensos e, diariamente, realizavam-se, sob aplausos populares, execuções públicas e em massa. Por isso, o líder jacobino teve a possibilidade de fazer do lema revolucionário exatamente seu contrário. De 35 a 40 mil pessoas foram assassinadas pelo governo. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Um (di)lema da modernidade.

Paz, terra e pão! Em 1917, a Rússia fez a primeira revolução anticapitalista do planeta. Como a vertente ideológica era marxista a imagem do nascimento foi usada. Marx anunciara, num de seus textos, que a “violência é a parteira da história”. Para dar nascimento à nova sociedade – como se fosse possível esquecer o passado que nos precede ou a tradição que nos forma – o terror, novamente ele, próprio dos movimentos totalitários, foi chamado para parir o filho bastardo. A paz, mote inicial, converteu-se em guerra fria para os russos e guerra quente, em altíssima temperatura, para o Afeganistão ocupado pelos “soviéticos”(1979-1989) e para o Vietnã (1959-1975), para citar dois exemplos. O que dizer da escassez de alimentos no final dos anos 80 do século XX? O MacDonalds chegou para dar pão para os russos, em 1990! O que dizer das terras para todos, ou o direito de decidir sobre o chão em que se pisa? A Chechênia é considerada, até hoje, como “desconhecida” pelas nações democráticas (leia-se: membros da ONU). A Rússia desconhece seu direito de ter paz, pão e terra! E o que dizer dos gulags? Esse sistema funcionou de 1918 até 1956. Lá, foram aprisionadas milhões de pessoas, muitas delas vítimas das perseguições de Stalin. Os gulags são considerados por Hannah Arendt em seu clássico Origens do totalitarismo[3] como a vertente socialista dos campos de concentração nazistas porém, menos conhecidos. Ambos desejavam destituir os inimigos políticos da capacidade de pensar e agir. Desejavam, distantes de todos os motes fundadores, transformar seres humanos em marionetes. Paz, pão e terra! Outro (di)lema da modernidade!

Tudo é possível! O lema do movimento nazista (1933-1945) define o seu fundamento. Se tudo é possível logo, tudo é permitido. Para Arendt, o nazismo no poder considerava-se o artífice de uma nova humanidade. Do jeito deles, claro! De um jeito justificado. O nazismo, avesso ao Parlamento, ao Estado (dele se apropriando para acelerar o movimento, mas com desdém quase absoluto por esse entrave histórico nada dinâmico), à sociedade civil (sua predileção era pelo homem-de-massa, esse mesmo que vemos hoje anunciando seu ódio à política como postura crítica!) elegeu as leis da Natureza (acho que Darwin tem muito a ver com isso) e da História (eles leram Marx?) como seus porta-vozes. Ou o inverso, já que não se sabe quem criou quem. A Natureza e a História são leis universais. O movimento apenas lhes dá acabamento, cumprimento, funcionalidade. Se tudo é possível, porque não acelerar (a suástica sugere a energia do movimento incessante) o aperfeiçoamento da humanidade? É assim que “os laboratórios de uma nova humanidade, os campos de concentração, rompem com as tradicionais formas de se pensar a violência e o poder, ultrapassando as categorias do pensamento ocidental e do bom senso” através do qual “tentamos compreender certos elementos da experiência atual ou passada que simplesmente ultrapassam os nossos poderes de compreensão. Tentamos classificar como criminoso um ato que esta categoria jamais poderia incluir. Porque, no fundo, qual o significado do conceito de homicídio quando nos defrontamos com a produção de cadáveres em massa?[4]”. Tudo é possível. Não é um lema que soa moderno?

Yes, we can. O mote mais marqueteiro dos últimos anos - por isso eficiente e popular-, foi o das eleições de Barack Hussein Obama. Nada mais moderno ou se quisermos, nada mais politicamente correto. A sociedade civil norte-americana viu-se diante de uma renovada crença no futuro, como se Obama restituísse aos estadunidenses uma incrível ligação entre o presente e o passado, entre a geração atual e os founding fathers, de 1776. O mote foi no inconsciente coletivo e fez ressurgir um nacionalismo como nunca se viu. Nacionalismo republicano, bem entendido! Mas Obama será capaz de refazer o poderio norte-americano no mundo atual? Para Wallerstein, “no momento em que nos aproximamos da próxima década, é possível antecipar grande turbulência em duas frentes – a arena geopolítica e a economia mundial, com o relativo declínio do poder geopolítico norte-americano, agora percebido por quase todos, e que nem mesmo um Obama presidente será capaz de reverter[5].” Yes, we can! A res publica continua sendo um dos pilares da modernidade, renovado em seu berço mais antigo.


[1] Mestre em Filosofia Social e Política pela UFMG. Site: http://recantodasletras.uol.com.br/autores/doserro
[2] ANSART, Pierre. Hannah Arendt: a obscuridade dos ódios públicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, p. 53.
[3] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
[4] Idem, p. 491.
[5] Immanuel Wallerstein. Construir um outro mundo, em meio à tempestade. Disponível em Yale Global Magazine (http://yaleglobal.yale.edu). Acesso: 04/04/2009.

2 comentários:

  1. Primeiramente parabenizá-lo pela participação e o texto de grande profundidade teórica.

    “no momento em que nos aproximamos da próxima década, é possível antecipar grande turbulência em duas frentes – a arena geopolítica e a economia mundial, com o relativo declínio do poder geopolítico norte-americano, agora percebido por quase todos, e que nem mesmo um Obama presidente será capaz de reverter"

    O declínio norte-americano se faz mais perceptível a partir do descompromisso com o mundo da maneira ao qual este país mesmo ajudou a consolidar. Ao dar forças às instituições, garantir instrumentos reguladores ao comportamentos dos Estados, os EUA caíram em uma armadilha. Uma potência não pode atuar a partir de regras universais pois tais regras, para serem invioláveis, deveriam ser a sua própria vontade. E a medida que estas regras são construídas com um entendimento intersubjetivo entre as nações mais poderosas, não pode ser tranformadas na velocidade em que os interesses norte-americanos se modificam.

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  2. Parabéns pelo primoroso artigo.

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